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Alterações ao CIRE (Parte II): Agilizar e Clarificar as Insolvências

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 08 Abr 2022

O Plano de Recuperação e Resiliência (“PRR”) é o programa nacional integrado no pacote extraordinário de financiamento aprovado pela Comissão Europeia para dotar os países da zona euro de instrumentos destinados à recuperação económica e social[1]. O PRR encontra-se dividido em 20 componentes, entre as quais a intitulada «Justiça Económica e Ambiente de Negócios», cujo desiderato é tornar mais eficientes as relações dos cidadãos e das empresas com o Estado, nomeadamente através do aumento da eficiência dos tribunais, em especial dos tribunais administrativos e fiscais e nas áreas das execuções e das insolvências. 

Em realização desse objetivo no que às insolvências concerne, a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, veio introduzir uma série de alterações no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”), que «visam agilizar os processos de insolvência e de recuperação»[2]. Denota-se também a vontade de clarificar aspetos substantivos e processuais controversos, pondo-se fim a divergências no seio da doutrina e da jurisprudência. As novidades recaem sobre diferentes matérias do regime insolvencial, das quais se destacam as seguintes: 

  1. Créditos subordinados e pessoas especialmente relacionadas

Esclarece-se que os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor são créditos subordinados desde que a relação especial existisse aquando da respetiva constituição, algo que a redação anterior da norma já permitia antecipar. 

Para efeitos da classificação de créditos como subordinados, atribui-se natureza taxativa ao elenco de pessoas especialmente relacionadas com o devedor, o que favorece a segurança jurídica, mas deixa de fora pessoas que porventura mereceriam ser incluídas no conceito. 

Ainda no âmbito da relação especial determinante da subordinação de créditos, estabelece-se que não é administrador de facto o credor privilegiado ou garantido que indique para a administração do devedor uma pessoa singular, desde que esta não disponha de poderes especiais para dispor, por si só, de elementos do património do devedor. Esta norma, apesar de restringir o conceito de administrador de facto – dando prevalência à autonomia decisória da pessoa singular por si indicada, ao invés, por exemplo, da mera superioridade informativa –, fornece importantes pistas sobre aquilo que o legislador entende por administrador de facto, facilitando o trabalho do intérprete. 

  1. Créditos laborais compensatórios

Clarifica-se que os créditos compensatórios resultantes da cessação de contrato de trabalho pelo administrador da insolvência após a declaração de insolvência do devedor constituem créditos sobre a insolvência. Assim se põe termo ao dissenso sobre a qualificação de tais créditos como dívidas da massa ou dívidas da insolvência, optando-se por um tratamento mais igualitário dos credores laborais, independentemente do momento em que cessa o contrato de trabalho. 

  1. Convenção das partes sobre efeitos contratuais da situação de insolvência

É nula a cláusula que atribua à declaração de insolvência (e já não à situação de insolvência, porventura não declarada) de uma das partes o valor de uma condição resolutiva do negócio ou confira nesse caso à parte contrária um direito de indemnização, de resolução ou de denúncia em termos diversos dos previstos no CIRE. 

É, porém, lícita a atribuição dos referidos efeitos a quaisquer situações anteriores à declaração de insolvência (admitindo-se, pois, a própria situação de insolvência), com exceção do pedido de abertura de um processo especial de revitalização (“PER”), da abertura de um PER ou do pedido ou concessão de prorrogação da suspensão das medidas de execução no PER[3].

  1. Saneamento do processo no incidente de verificação de créditos

Os créditos cuja verificação ou graduação necessite de produção de prova passam a ser provisoriamente verificados e graduados no despacho saneador a proferir no incidente de verificação de créditos, ao invés de se relegar para a sentença final a graduação de todos os créditos quando a verificação de alguns exija diligências probatórias. Procura-se, deste modo, simplificar a tramitação da fase da verificação do passivo e da graduação de créditos. 

  1. Deveres dos administradores da insolvência

Há um reforço das tarefas atribuídas ao administrador da insolvência nos casos em que o processo prossegue para liquidação do património do insolvente.

Em primeiro lugar, uma vez transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência tem o dever de apresentar, no prazo de 10 dias contados da data daquela assembleia, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar. A falta de apresentação, ou o incumprimento gravemente culposo, do plano de liquidação constitui justa causa de destituição do administrador da insolvência. 

Em segundo lugar, instituem-se rateios parciais obrigatórios sempre que, cumulativamente:

a) Tenha transitado em julgado a sentença declaratória da insolvência e o processo tenha prosseguido para liquidação do ativo;

b) Esteja esgotado o prazo de impugnação da lista de credores reconhecidos sem que nenhuma impugnação tenha sido deduzida, ou, tendo-o sido, se a impugnação em causa já estiver decidida, seja por falta de resposta à impugnação, seja por decisão judicial que pode não ser definitiva[4];

c) As quantias depositadas à ordem da massa insolvente sejam iguais ou superiores a € 10.000,00 e a respetiva titularidade não seja controvertida;

d) O processo não se encontre em condições de elaboração do rateio final.

Reunidas estas condições, o administrador da insolvência deve elaborar e publicar o mapa de rateio parcial, dispondo a comissão de credores (caso exista) e os credores de 15 dias para se pronunciarem. Findo esse prazo, o processo é concluso ao juiz, que decide sobre os pagamentos que considere justificados.

Em terceiro lugar, o administrador da insolvência passa a estar obrigado a apresentar proposta de distribuição e de rateio final (antes podia, e era costume, fazê-lo, mas o dever era da secretaria do tribunal), no prazo de 10 dias a contar do pagamento da conta de custas, podendo os credores e a comissão de credores, se existir, exercer o contraditório no prazo de 15 dias. Decorrido tal prazo, a secretaria elabora um termo de apreciação da proposta de rateio final e o juiz decide se a valida ou não.

Em quarto e último lugar, todas as somas, sem exceção, recebidas em dinheiro pelo administrador da insolvência devem ser imediatamente depositadas em conta bancária titulada pela massa insolvente. Deixam, assim, de ressalvar-se daquele depósito as quantias estritamente indispensáveis às despesas correntes de administração. 

  1. Qualificação da insolvência

Para efeitos da qualificação da insolvência como culposa, esclarece-se que a presunção de culpa grave dos administradores de direito ou de facto do devedor que não seja pessoa singular que incumpram o dever de requerer a declaração de insolvência ou a obrigação de elaborar, submeter à fiscalização ou depositar as contas anuais se cinge à existência de um comportamento gravemente culposo. 

Prevê-se de forma expressa o caráter perentório do prazo para abertura do incidente de qualificação de insolvência, permitindo, contudo, a sua prorrogação (que não pode exceder seis meses desde o início do prazo), mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado. 

Consagra-se a suspensão da instância em caso de falecimento de um dos propostos afetados pela qualificação da insolvência, abrindo a porta à dedução de incidente de habilitação nos termos gerais da lei processual civil. 

No que respeita à condenação das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência a indemnizarem os credores do insolvente, a mesma deixa de ser «no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios», para passar a ser «até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios». Estas ligeiras alterações de redação suavizam a condenação dos afetados, na medida em que admitem um quantum indemnizatório inferior ao montante dos créditos não satisfeitos. 

  1. Alinhamento com o regime do PER em matéria de conteúdo do plano e maiorias de aprovação

O conteúdo do plano de insolvência passa a estar em conformidade com o teor previsto para o plano de recuperação em PER. 

Altera-se a maioria de aprovação do plano de insolvência, reduzindo-a de 2/3 para metade e aproximando-a de um dos sistemas de formação de maiorias de aprovação do plano de recuperação em PER[5]. Assim, considera-se aprovado o plano de insolvência que, sendo votado por credores cujos créditos representem pelo menos 1/3 dos créditos com direito de voto, obtenha o voto favorável de (i) mais de 50% da totalidade dos votos emitidos e (ii) mais de 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados com direito de voto (não se considerando como tal as abstenções). 

  1. Exoneração do passivo restante

No contexto da transposição da Diretiva sobre restruturação e insolvência[6] para o ordenamento jurídico nacional, no que respeita ao incidente de exoneração do passivo restante, reduz-se o período da cessão de cinco para três anos e reduz-se o prazo para requerer a recusa da exoneração de um ano para seis meses. 

Por outro lado, permite-se ao juiz que prorrogue o período de cessão, até ao máximo de três anos, mediante requerimento fundamentado do devedor, de um credor da insolvência, do administrador da insolvência (se ainda estiver em funções) ou do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor. Caso conclua pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações que a lei lhe impõe, o juiz decreta a prorrogação. 

Prevê-se a possibilidade de uma liquidação superveniente, finda a liquidação do ativo do insolvente e encerrado o processo de insolvência. Passa a ser possível, durante o período de cessão, o fiduciário apreender e vender bens que ingressem então no património do devedor e, posteriormente, afetar o respetivo produto da venda aos credores, nos mesmos moldes do rendimento disponível. 

Inovatoriamente, estabelece-se que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante, o valor da causa é determinado pelo passivo a exonerar do devedor (e não pelo seu ativo, como poderia resultar da regra geral do CIRE sobre o valor da ação). 

O intuito legislativo de agilização dos processos de insolvência é patente na verificação e graduação provisórias de créditos no despacho saneador, na instituição de rateios parciais obrigatórios, na facilitação da aprovação do plano de insolvência e na diminuição do período da cessão no incidente de exoneração do passivo restante. Além disso, a nova lei logra esclarecer questões pontuais que fomentavam discussão, o que permitirá uma mais célere aplicação do Direito. 

A Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, é imediatamente aplicável aos processos de insolvência pendentes no dia 11 de abril de 2022, data da sua entrada em vigor. 

Alexandra Valpaços | ava@servulo.com

 



[2] Cfr. Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 115/XIV/3.ª (págs. 2-3), que deu origem à Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.

[3] Cfr. Artigo 17.º-E, n.º 13, do CIRE, na redação introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.

[4] Nos casos em que haja impugnações resolvidas por decisão judicial não transitada em julgado, afigura-se difícil a articulação da obrigatoriedade de rateio parcial com a norma prevista no artigo 173.º do CIRE – uma das regras-chave do processo de insolvência –, segundo a qual o pagamento dos créditos sobre a insolvência apenas contempla os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado.

[5] Sobre os três sistemas de formação das maiorias de aprovação do plano de recuperação em PER, remete-se para o update intitulado “Alterações ao CIRE (Parte I): O Reforço do PER”, publicado em fevereiro de 2022 em www.servulo.com.

[6] Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas).

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