Lei 23/2019 – Nova graduação de títulos de dívida e de depósitos de instituições de crédito
PUBLICAÇÕES SÉRVULO 18 Mar 2019
A Lei n.º 23/2019, de 13 de março, procedeu à transposição para o ordenamento jurídico nacional a Diretiva (UE) 2017/2399, que havia alterado a Diretiva 2014/59/UE (relativa à recuperação e resolução de instituições de crédito e empresas de investimento), no que respeita à posição dos instrumentos de dívida não garantidos na hierarquia da insolvência dessas instituições.
Para que as instituições de crédito aumentem a sua resolubilidade (designadamente através do instrumento de recapitalização interna), o legislador europeu introduziu uma categoria de dívida sénior “não privilegiada”, com uma posição de prioridade face aos instrumentos de fundos próprios e dos passivos subordinados, mas inferior à de outros passivos seniores (sendo que, para cumprimento do requisito de subordinação na norma TLAC ou Total Loss-Absorbing Capacity, apenas a categoria sénior não privilegiada deverá ser elegível para satisfazer o requisito de subordinação). Traduzindo estas designações para outras que são mais habitualmente usadas no nosso quadro legal falimentar, trata-se da criação de uma subcategoria de créditos comuns, com uma hierarquia superior a créditos subordinados mas inferior a outros créditos comuns.
Com esta nova lei, e por meio de alteração ao Decreto-Lei n.º 199/2006 (que regula a liquidação de instituições de crédito e sociedades financeiras), foi estabelecida esta tal (sub)classe de créditos intermédia, algures entre os créditos subordinados e os créditos comuns. Em termos práticos, os créditos desta (sub)classe são pagos na liquidação depois de integralmente pagos os demais créditos comuns e antes de serem pagos os créditos subordinados.
Os créditos que são classificados com esta classe intermédia são os créditos emergentes de instrumentos de dívida emitidos por instituições de crédito e algumas empresas de investimento desde que preencham cumulativamente as seguintes condições: (i) o prazo de vencimento inicial dos instrumentos de dívida é igual ou superior a um ano; (ii) os instrumentos de dívida não contêm derivados embutidos e não são eles próprios derivados e (iii) as disposições contratuais aplicáveis aos instrumentos de dívida e, se aplicável, ao respetivo prospeto, referem expressamente que, em caso de insolvência, a graduação dos créditos emergentes dos instrumentos de dívida é a prevista no novo diploma.
É natural que esta (sub)classe intermédia possa parecer um corpo estranho na arrumação conceptual que o CIRE faz da hierarquia dos créditos, na medida em que os credores comuns, precisamente por serem “comuns”, seriam aquela categoria sem qualquer traço diferenciado que justifique um tratamento distinto e que, como tal, são pagos em condições de igualdade entre si, em concurso.
Embora, entre nós, pudesse parecer mais natural a arrumação desta nova (sub)categoria no topo dos créditos subordinados, a escolha não é desprovida de sentido prático: uma emissão de dívida com uma chancela de dívida sénior não preferencial ou não garantida quase que tem requintes de uma campanha de branding, ao designar desta forma um instrumento de dívida que mais não é do que um crédito subordinado (daí satisfazer o requisito de subordinação da TLAC), ainda que o primeiro de entre os créditos subordinados a serem pagos. Reconhece-se, no entanto, que esta chancela poderá contribuir para reduzir custos de emissão (as emissões de dívida sénior são menos onerosas para o emitente do que a de passivos subordinados).
A escolha também evita obstáculos que poderiam ser levantados se os créditos fossem tidos como subordinados (e.g. em matéria de possibilidade de compensação de créditos num cenário de insolvência ou de possibilidade de designação para a Comissão de Credores).
Este diploma aproveitou ainda para atribuir privilégios creditórios a alguns depósitos excluídos do âmbito de proteção do Fundo de Garantia de Depósitos, designadamente aqueles constituídos por instituições de crédito, empresas de investimento, instituições financeiras, empresas de segures e de resseguros, instituições de investimento coletivo, fundos de pensões, entidades do setor público administrativo nacional (afastando, para este caso, a regra geral do CIRE que prevê a extinção de privilégios creditórios do Estado com uma determinada antiguidade ) e estrangeiro e organismos supranacionais .
O privilégio criado é do mesmo tipo daquele que já beneficiam os depósitos elegíveis para cobertura pelo Fundo de Garantia de Depósitos, i.e. estes depósitos gozam de privilégio geral sobre os bens móveis da instituição de crédito e de privilégio especial sobre os seus imóveis próprios (ainda que o privilégio ora criado ceda perante estes).
Suscita, como tal, as mesmas inquietações que já resultavam desta solução (que não é exigida pelo legislador europeu), designadamente por consagrar um privilégio especial que incide sobre todos os imóveis da instituição e por não esclarecer em que momento se constitui o privilégio dito especial.
Caso nasça com a constituição do crédito (in casu, o direito ao reembolso do saldo dos depósitos), como é típico dos privilégios creditórios especiais, e não no momento em que se verifique a indisponibilidade dos depósitos e acionamento do Fundo de Garantia de Depósitos, surpreenderia a possibilidade de o privilégio (oculto, sem qualquer tipo de publicidade) ser oponível a terceiros que adquiram imóveis abrangidos pelo privilégio depois da sua constituição (i.e. todos os imóveis que estejam na titularidade da instituição do crédito no momento em que é constituído o depósito e que fossem alienados a terceiros) e preferiria à hipoteca ou direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores ao privilégio (sem embargo das posições que o Tribunal Constitucional já adotou sobre privilégios de igual natureza).
Francisco Boavida Salavessa