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Real Madrid tem de devolver auxílios ilegais

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 13 Jan 2017

O princípio da incompatibilidade dos auxílios estatais com o mercado único, consagrado na União Europeia visa, por um lado, evitar que a concorrência efetiva seja falseada em consequência da concessão de vantagens a certas empresas face aos seus concorrentes e, por outro lado, promover a melhor afetação dos fatores de produção e a eficácia económica no quadro europeu.

Apesar de ser pacífico que a política e normas de defesa da concorrência se estendem a todos os sectores da atividade económica, tem existido alguma reserva na absorção do fenómeno desportivo pelo direito da concorrência e pelas normas do mercado interno. As especificidades do sector – v.g. a promoção do desporto como fim de interesse geral (artigo 79.º da Constituição da República Portuguesa) – e a natureza não económica de algumas matérias e situações, i.e. aquelas medidas puramente desportivas, admitem, como a própria Comissão Europeia tem defendido, que regras genuinamente desportivas não sejam, regra geral, objeto de aplicação das normas comunitárias da concorrência (cfr. Mario Monti, “Governance in Sports”, realizado a 26 e 27 de fevereiro de 2001, em Bruxelas).

Ademais, no desporto e em particular no desporto profissional, os clubes desportivos estão diretamente interessados não só na existência de outros clubes, como também na saúde financeira dos concorrentes desportivos, sem a qual o sucesso de uma competição de cariz desportivo ficaria fortemente ameaçado. O sucesso desportivo está intrinsecamente relacionado com um incremento dos resultados económicos e financeiros dos concorrentes desportivos. Com efeito, é possível (mas, por vezes, difícil) estabelecer a diferença entre a designada “concorrência desportiva” e a “concorrência económica”, o que dificulta a aplicação prática do direito da concorrência ao desporto.

No entanto, se em 1999 o Comité das Regiões escreveu que «[o]s clubes desportivos não são empresas e as associações desportivas não são organizações industriais no sentido do direito económico» (O modelo europeu do desporto), o certo é que, para efeitos do direito da concorrência, os clubes desportivos, enquanto entidades que oferecem bens ou serviços num determinado mercado, independentemente da estrutura jurídica que adotem, são considerados «empresas».

Por outras palavras, os clubes de futebol, ainda que sejam pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos que prosseguem fins de interesse geral são, por estarem envolvidos numa atividade económica, qualificados como «empresas» — entidades que desenvolvem uma atividade económica, independentemente do seu estatuto jurídico e do modo como são financiadas (cfr. Processos apensos C-180/98 a C-184/98, Pavlov e outros, ECLI:EU:C:2000:428, n.º 74) — para efeitos do disposto no direito da concorrência e, em concreto, no domínio dos auxílios públicos.

E, sendo assim, não é de estranhar que sejam objeto da atenção crescente da Comissão Europeia, como há poucos dias se tornou de novo notícia, com a publicação da Decisão da Comissão Europeia 2016/2391 de 4 de julho de 2016, sobre os auxílios fiscais a alguns dos mais importantes clubes de futebol espanhol (Athletic Club Bilbao, Club Atlético Osasuna, FC Barcelona e Real Madrid CF).

A decisão não só reforça a doutrina constante de «[o]s clubes de futebol qualificam-se como empresas nos termos do artigo 107.º, n.º 1, do Tratado se estiverem envolvidos numa actividade económica, independentemente do seu estatuto ao abrigo da lei nacional», estando por isso «sujeitos ao direito da concorrência da União Europeia» (cfr. §49), como ordena a recuperação dos auxílios aos referidos clubes.

Como se sabe, a aferição da existência de auxílios públicos a clubes de futebol — como a qualquer outra empresa ou sector — dependerá da análise casuística da verificação, cumulativa, das condições previstas no artigo 107.º, n.º 1, do TFUE, a saber: será auxílio de Estado toda a medida que (i) seja financiada por meio de recursos públicos — independentemente de ser uma prestação positiva do estado (subsídios) ou intervenção que alivie encargos (isenções) —, (ii) que conceda vantagem; (iii) seletiva; (iv) distorcendo ou ameaçando distorcer a concorrência no mercado interno; e, ainda, (v) seja suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados-Membros.

Na Decisão supra identificada, a Comissão não teve dificuldade em verificar que a atribuição de vantagem económica aos clubes de futebol tem efeito sobre as trocas comerciais e distorce a concorrência, visto que «[q]uantos mais fundos dos clubes tiveres disponíveis para atrair jogadores de excelência, ou para os manter, maior será o seu sucesso nas competições desportivas, o que promete mais receitas provenientes das referidas atividades».

Nesta senda, considerando que a vantagem financeira conferida pelo Estado a determinado clube de futebol — independentemente de ser um subsídio, isenção, redução, adiamento, etc.— é suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados membros e de distorcer a concorrência «na medida em que a sua posição financeira será reforçada em comparação com a dos seus concorrentes no mercado do futebol profissional» (cfr. §73), a Comissão Europeia concluiu que a aprovação da Lei 10/1990 consubstanciava um auxílio sob a forma de um privilégio fiscal aos clubes de futebol acima identificados, incompatível com o mercado interno. Por conseguinte, Espanha ficou, ao abrigo desta decisão, obrigada a pôr fim ao tratamento preferencial dos clubes de futebol beneficiários, ainda, a proceder à recuperação do benefício fiscal que lhes fora concedido a partir do exercício fiscal de 2000.

Cumpre notar que o sentido desta decisão da Comissão Europeia não se encontra isolado no historial (ainda que reduzido) de decisões deste órgão sobre auxílios públicos a clubes desportivos, nomeadamente através de vantagens concedidas pelas autoridades locais/municipais no que toca aos terrenos para a nova cidade desportiva do Real Madrid, em termos que certamente não são totalmente estranhos aos que sucederam noutras geografias. No caso, tratava-se de uma transação judicial em que as autoridades públicas compensavam financeiramente o Real Madrid pela desistência de um processo contra as mesmas. Como a Comissão Europeia: «From the perspective of a market economy operator, whether the conclusion of such a settlement agreement is in line with market conditions depends on two factors: first, the probability that it will be held liable for its inability to perform its contractual obligations (the source of the legal dispute) and, second, the maximum extent of its financial exposure resulting from such a finding of liability. Both factors determine whether entering into a settlement agreement is in line with market conditions and under what terms, namely the amount of compensation offered to settle the legal dispute». Espanha foi condenada a ordenar a recuperação de 18 milhões de euros de auxílios ao Real Madrid. O recurso encontra-se pendente no Tribunal de Justiça da União Europeia.

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