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Jornalistas: constituição de Assistente como meio de acesso ao processo em segredo de justiça? – o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 20.12.2023

SÉRVULO PUBLICATIONS 20 Feb 2024

A controvérsia acerca da legitimidade da constituição de jornalistas como assistentes no processo penal tem suscitado, ao longo dos últimos anos, uma acesa discussão nos tribunais portugueses.

No aresto mais recente sobre o tema, o Tribunal da Relação de Lisboa revogou o despacho da Juiz de instrução criminal que havia admitido, durante a fase de inquérito de um processo sujeito a segredo de justiça, a constituição de jornalista como assistente ao abrigo do artigo 68.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal (CPP).

Segundo a tese que fez vencimento, o estatuto material do assistente e a natureza dos interesses que a qualidade e posição processual se destinam a assegurar nos casos de legitimidade «popular», previstos no artigo 68°, n° 1, alínea e) do C.P.P. ­impedem a apropriação da qualidade quando através da constituição de assistente se pretendem prosseguir outros interesses, fora ou em desvio das finalidades da atribuição do estatuto de sujeito processual.

O artigo 68.º, n.º 1, alínea e), do CPP, admite que qualquer pessoa possa constituir-se assistente no processo penal quando estejam em causa os chamados “crimes sem vítima”, tais como a corrupção, o abuso de poder e o recebimento ou oferta indevidos de vantagem. 

Apesar de o legislador não ter delimitado quem pode requerer o estatuto de assistente – deixando tal possibilidade aberta a qualquer pessoa que o requeira ao abrigo daquele artigo –, para o Tribunal da Relação de Lisboa a circunstância de estarem em causa crimes incluídos no catálogo a que a alínea e) do n.º 1 do artigo 68.º se reporta não implica, automaticamente, o reconhecimento de todos os pressupostos normativos de que depende a constituição como assistente.

Com efeito, entendeu o Tribunal que tal norma deve ser interpretada em conjugação com o disposto no artigo 69.º, n.º 1, do CPP, daí resultando que o assistente, no exercício de uma cidadania ativa, tem uma posição de colaborador do Ministério Público na realização da justiça, e não de prossecutor de quaisquer outros fins de natureza subjetiva, tais como o acesso privilegiado à informação sobre os factos em investigação para utilização na sua atividade profissional.

Ora, não tendo o jornalista apresentado a existência de um qualquer interesse legítimo para agir no exercício de uma cidadania ativa e assim colaborar com o Ministério Público na investigação em curso naqueles autos, considerou o Tribunal que o seu intuito ao constituir-se assistente seria, pois, aceder à informação dos autos do processo numa fase em que este encontrava-se sujeito a segredo, o que, a ser admitido, representaria uma violação do espírito da lei, suscitando, ainda, questões ao nível do Estatuto do Jornalista no que toca à sua obrigação de neutralidade e objetividade.

Sublinha o Tribunal que a liberdade de informar, apesar de constitucionalmente tutelada, não é um direito absoluto. Estando o processo sujeito a segredo de justiça, entendeu a Relação de Lisboa que, tendo em consideração os interesses que o regime do segredo tutela – entre os quais a preservação da presunção de inocência do arguido e a realização da justiça –, o acesso aos autos, por parte dos jornalistas, não pode ser absoluto. Para o Tribunal, caso se admitisse, na fase de inquérito, a constituição como assistente de jornalistas numa situação semelhante àquela dos autos, estaria encontrada a forma de qualquer jornalista contornar o regime estabelecido no artigo 88.º do CPP, que estatui, de forma mais restritiva, os termos em que os órgãos de comunicação social podem ter acesso ao processo.

Ora, sendo dever dos jornalistas pesquisar, recolher, selecionar e tratar factos, notícias ou opiniões, para divulgá-los com fins informativos, pela imprensa, e não sendo possível retirar-lhes o exercício das suas funções caso ingressassem no processo como assistentes, o Tribunal presumiu que, a admitir-se tal ingresso, os jornalistas utilizariam as informações recolhidas para divulgá-las, como é imanente à sua atividade. Partindo desta pressuposição, entendeu o Tribunal que a intervenção de jornalistas como assistentes, num processo ainda em fase de inquérito e sujeito a segredo, frustraria os objetivos da investigação em curso, com risco de manipulação da prova e perda da genuinidade da mesma, prejudicando, assim, a realização da justiça.

Nestes termos, concluiu o Tribunal que a atividade do jornalista é incompatível com o acesso ao processo como assistente, ante a indiscutível utilização do conteúdo processual como matéria prima para seu mister profissional, revelando-se, assim, uma verdadeira incompatibilidade de funções entre o exercício do jornalismo e os deveres do assistente, por evidente conflito de interesses, que deve ser resolvido em prol do interesse público, consubstanciado no resguardo da efetividade da prestação jurisdicional, livre da influência de sujeitos que desestabilizam e tumultuam o processo.

O aresto contou com um voto de vencido, por se entender que, não distinguindo o legislador profissões que podem ou não aceder ao estatuto de assistente, não pode o tribunal arranjar forma de distinguir, coartando assim o exercício do direito de constituir-se como tal.

O voto de vencido sublinha que a lei dá solução à violação do segredo por jornalistas, prevendo a sua punição pelas consequências que, em decorrência desta violação, vierem a causar. Assim, o tribunal não é guardião de comportamentos e vontades e não se pode admitir que o poder judicial, num espírito paternalista, tom[e] conta de tudo e de todos. A lógica deveria ser, pois, a da punição a posteriori, e não a da limitação a priori: o jornalista, exercendo o seu direito de constituir-se assistente, deve fazê-lo com responsabilidade, sendo obrigado a conhecer a lei e devendo ser responsabilizado pela sua violação. 

Cláudia Amorim | ca@servulo.com

Maria Luísa Esgaib Borges | mlb@servulo.com