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Igualdade na concorrência: o caso das alianças retalhistas

SÉRVULO NA IMPRENSA 10 Nov 2023 in Expresso

Miguel Gorjão-Henriques, sócio da SÉRVULO responsável pelo departamento de Europeu e Concorrência assina artigo no Expresso sobre a Igualdade na concorrência: o caso das alianças retalhistas.

O professor da Faculdade de Direito de Coimbra defende que “uma economia madura permite às empresas actuarem com confiança no regular funcionamento dos mercados, permitindo uma concorrência livre e equilibrada entre as empresas” e por isso “assumem especial relevo as orientações que a Comissão Europeia tem produzido para fornecer o seu posicionamento face a novos e velhos desafios do comércio e da concorrência”.

“A igualdade é conceito da moda. E mesmo na concorrência, em que a regra é a diferenciação, o objectivo captar clientes e aumentar a quota de mercado ou os volumes de negócios. Qualquer empresa quer vender mais ou melhor do que o seu concorrente. Mas há uma realidade incontornável: em geral, para vender é preciso comprar.

O contexto regulatório é importante. Quando se vê o presidente da AdC a questionar-se sobre as regras que a sua entidade deve seguir para exercer as suas próprias competências e objectivos estatutários, e o Tribunal Constitucional a defender os direitos fundamentais e a ser o juiz das liberdades, importa ter reconhecer as dúvidas que também as empresas têm: o que posso fazer?

As mudanças foram radicais, desde 2003. Do modelo centralizado em vigor até ao grande alargamento da UE, que dificultava a agilidade das empresas mas conferia mais segurança jurídica passou-se, a 1 de Maio de 2004, para um modelo regulatório em que o foco das empresas passou a ser a auto-regulação do seu comportamento empresarial. Nesta arquitectura em rede, sob coordenação implícita da Comissão Europeia (CE), as empresas não fazem depender as suas decisões comerciais de actos administrativos permissivos ou autorizativos. Cada uma avalia a conformidade da sua conduta com as regras de concorrência. Assumem por isso especial relevo as orientações que a CE tem produzido para fornecer o seu posicionamento face a novos e velhos desafios do comércio e da concorrência.

Recentemente, a CE publicou linhas de orientação sobre acordos entre concorrentes, com 168 páginas e 39 (leu bem) exemplos práticos, que permitem um mais fácil juízo sobre a pró ou anticoncorrencialidade de uma conduta colusiva. Longe de visões binárias, a CE não afirmou a ideia (que por vezes perpassa nos media das autoridades) de que as empresas, para concorrerem legitimamente entre si, têm de viver isoladas, desconhecendo o que os outros fazem. Pelo contrário! A concorrência não existe na ilha de Robinson Crusoe. Mesmo empresas que actuem no mesmo nível da cadeia económica de valor podem coordenar comportamentos, v.g. para melhorar o seu sourcing e, assim, beneficiar os seus clientes, muitas vezes os consumidores, ou seja, todos nós.

O valor da igualdade o impõe. Perante players globais, pode ser necessário para garantir uma melhor proposta de valor para os consumidores. É o caso, paradigmático, das alianças retalhistas. Ao contrário dos soundbytes populistas a que muitos inesperadamente cedem, não há só um campo de batalha aonde a concorrência se decide: nos mercados de abastecimento, retalhistas e fornecedores, multinacionais globais e com enorme poder de mercado (selling power), defrontam-se, e os consumidores só têm a ganhar.

Segundo o Eurocommerce, os fabricantes PepsiCo, Nestlé ou Coca-Cola tinham em 2022, respectivamente, 315.000, 276.000 ou 83.000 funcionários, enquanto os retalhistas Ahold Delaize, REWE ou Tesco tinham, respectivamente, 414.000, 380.000 e 355.000. Já quanto ao market capitalization, aquelas tinham 223,91, 296,69 e 241,48 (mil milhões de €), enquanto as maiores retalhistas tinham 29,85, 35,19 ou 21,14 (idem). Em 2023, os resultados oficiais da Coca-Cola (2º semestre de 2023) mostram um crescimento de receitas líquidas de 6% e de 10% de price/mix. Em suma, comparando os dois maiores de cada fileira, a Coca-Cola tem M$43,004 contra M$86,984 da Ahold Delaize, mas quase o triplo de operating income. E as margens operacionais? Para 2021/2022 os números são esmagadores: 25,4% (Coca-Cola) e 17,4%(Nestlé) versus 4,3% (Ahold Delaize) ou 2,1% (REWE).

Entre as maiores alianças retalhistas europeias contam-se a Coopernic [criada em 2006, reúne E.Leclerc (França), REWE Group (Alemanha), Ahold Delhaize (Países Baixos), Coop (Itália) ou Colruyt Group (Bélgica)] ou a Epic Partners [inclui a Edeka (Alemanha), a Migros (Suíça), a Jerónimo Martins (Portugal ou Polónia) a ICA (Suécia, Estónia, Letónia e Lituânia), a Système-U (França) ou a Picnic (Baixos e Bélgica)].

Desde que respeitados os pressupostos do direito da concorrência — (i) ausência de concorrência significativa dos membros nos mesmos mercados geográficos de retalho; (ii) ausência de domínio sobre o mercado retalhista geográfico em que opera; e (iii) cada membro da aliança contrate individualmente com o fornecedor — é a concorrência e os consumidores que beneficiam destas alianças e das negociações conjuntas que as mesmas potenciam. E mesmo que, transitoriamente, algumas categorias de produto possam faltar num retalhista, os consumidores estão bem servidos: há produtos substitutos nas prateleiras do mesmo supermercado e podem obter até aqueles — e porventura em melhores condições — nas cadeias concorrentes.

Em mercados retalhistas extremamente competitivos, como o português, com novos entrantes e uma dimensão promocional dominante, a pressão pela procura de preços mais baixos é enorme. Se mesmo em mercados extremamente regulados (v.g., dos medicamentos) é permitida a prática de descontos do fabricante ao retalhista, na negociação com grandes multinacionais é necessário recordar um velho ensinamento do direito da concorrência, hoje por vezes esquecido: o objectivo do direito é o bem-estar (Benjamin Cardozo) e, no da concorrência é, em último termo, o bem-estar dos consumidores (consumer welfare). A política de concorrência deve promover práticas que aumentem a eficiência, atenuando o selling power de grandes multinacionais ou o buying power de empresas dominantes. Também assim se iguala as empresas na concorrência e permite uma maior pressão por preços mais baixos, combatendo também a inflação. E isso implica que, se assegurada a concorrência dentro e entre marcas, seja permitido até que que se possa “credibly threaten to drop his brand” (P. Gerhart, 1981), desde que retalhistas, fornecedores e consumidores tenham alternativas.

A CE dá um bom exemplo das nuances do fenómeno, num ápice da livre concorrência, e é desassombrada na luta pela igualdade de e na concorrência: em último termo, é o consumidor quem beneficia e, com ele, todo o mercado interno.

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