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As alterações ao regime de contencioso pré-contratual do CPTA

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 19 Set 2019

1. Em 17 de setembro de 2019 foi publicada a Lei n.º 118/2019 que, entre o mais, introduz alterações no Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Algumas dessas alterações respeitam ao processo de contencioso pré-contratual — ao efeito suspensivo automático da propositura da ação de impugnação da decisão de adjudicação e à adoção de medidas provisórias (artigos 103.º-A e 103.º-B).

2. Até ao início de produção de efeitos do diploma (16 de novembro de 2019), a propositura de uma ação de contencioso pré-contratual de impugnação da decisão de adjudicação implica(va) o efeito suspensivo dessa decisão.

A principal alteração agora introduzida é a de que nem sempre assim sucederá.

Nos termos da nova redação introduzida ao artigo 103.º-A, n.º 1, “As ações de contencioso pré-contratual que tenham por objeto a impugnação de atos de adjudicação relativos a procedimentos aos quais é aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 95.º ou na alínea a) do n.º 1 do artigo 104.º do Código dos Contratos Públicos, desde que propostas no prazo de 10 dias úteis contados desde a notificação da adjudicação a todos os concorrentes, fazem suspender automaticamente os efeitos do ato impugnado ou a execução do contrato, se este já tiver sido celebrado”.

Vale o mesmo por referir que as ações de impugnação de decisão de adjudicação apenas produzem o efeito suspensivo quando o procedimento pré-contratual adotado (com vista à celebração de contratos de empreitada e concessão de obras públicas, concessão de serviços públicos, de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços) tenha tido publicidade internacional[1] e, nestes casos, apenas quando tenha sido apresentada mais do que uma proposta.

Fora destes casos, se o autor pretender obter o efeito suspensivo da decisão de adjudicação, deverá requerer ao Tribunal a adoção da correspondente medida provisória, nos termos do novo artigo 103.º-B, n.º 1, “destinada a prevenir o risco de, no momento em que a sentença venha a ser proferida, se ter constituído uma situação de facto consumado ou já não ser possível retomar o procedimento pré-contratual para determinar quem nele seria escolhido como adjudicatário”.

3. No que respeita ao levantamento do efeito suspensivo, o legislador veio esclarecer, nos termos do artigo 103.º-A, n.º 2, que o correspondente pedido pode ser feito durante a pendência da ação, resolvendo legalmente a discussão que chegou a ser tida, aquando da entrada em vigor das alterações ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos em 2015, sobre se esse pedido estava sujeito a algum prazo, e a que a doutrina e a jurisprudência já tinham dado resposta, precisamente no sentido que agora é legalmente acolhido.

4. Quanto ao critério de decisão do incidente de levantamento do efeito suspensivo, apesar da alteração de redação, ele parece permanecer.

A este título alterou-se o conteúdo do artigo 103.º-A, n.os 2 e 4, deixando o n.º 2 de estabelecer qualquer exigência gradativa de alegação e prescrevendo o n.º 4 que “O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados todos os interesses suscetíveis de serem lesados, o diferimento da execução do ato seja gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos”.

Conforme já teve oportunidade de escrever-se:

“Ainda que o proposto novo n.º 2 deixe de fazer referência à necessidade de alegação de que o diferimento dos efeitos do ato é gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para o contrainteressado, a verdade é que a proposta do novo n.º 4, ao prever os dados relevantes para a ponderação, deixa de referir-se apenas a que os danos da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores e passa a prever que a suspensão seja gravemente prejudicial ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas. Ainda que se proponha eliminar estes termos da previsão do n.º 2, que previam um grau de exigência autónomo, um verdadeiro ónus, na alegação e prova de factos concretos[2], certo é que esse mesmo grau de exigência passou a constar do juízo ponderativo que cabe ao juiz realizar.

Dir-se-á porventura que a redação proposta para o n.º 4 não é a mais feliz. É que ao mesmo tempo que se convoca um juízo ponderativo, de comparação entre interesses, afirma-se que o efeito suspensivo só é levantado se houver a sua suspensão for gravemente prejudicial para o interesse público. Ora, esta passagem do texto da norma parece convocar um juízo absoluto: se for gravemente prejudicial, é sempre levantado o efeito suspensivo, independentemente do grau de prejuízo que decorre para o autor. E, a entender-se deste modo, cai por terra o juízo ponderativo que a própria Diretiva Recursos impõe. E, nessa circunstância, cair-se-ia, novamente, no incumprimento da Diretiva Recursos.

Por esse motivo deve rejeitar-se uma interpretação que absolutize o conceito indeterminado de gravemente prejudicial em detrimento da necessária ponderação entre os vários interesses em presença. Sendo fundamental manter o juízo ponderativo (de modo a respeitar a Diretiva Recursos, e até em resultado da necessária interpretação conforme — a este propósito cfr. o Acórdão Lucchini do TJUE, segundo o qual “incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais, na medida do possível, interpretar as disposições do direito nacional de forma a que possam ser aplicadas de modo a contribuírem para a implementação do direito comunitário[3]; este princípio da interpretação conforme é também aceite pela jurisprudência nacional[4]), impor-se-á a conclusão de que não é qualquer lesão do interesse público que permite o levantamento do efeito suspensivo, mas apenas a lesão que seja grave (e, para os outros interesses em presença, deverá ser uma lesão claramente desproporcional). E, para além de grave ou claramente desproporcional, esse prejuízo tem de demonstrar ser superior àquele que resultará para o autor. (…)

Dito isto, não está em causa apenas verificar se da manutenção do efeito suspensivo ocorrem prejuízos para o interesse público que são superiores aos prejuízos que decorrem para o autor.

Imperioso é que os prejuízos para o interesse público sejam graves e que, sendo, se revelem ser superiores àqueles que resultarão para o autor do levantamento do efeito suspensivo. O resultado parece, pois, ser alcançado do mesmo modo. Apenas se elimina a aparente contradição que resultava entre a parte final dos originários n.º 2 (ao remeter à aplicação do critério previsto no n.º 2 do artigo 120.º) e n.º 4”[5].

5. Por seu turno, o critério de decisão das medidas provisórias requeridas é o da simples ponderação entre os danos sofridos pelas partes. Nos termos do novo artigo 103.º-B, n.º 3: “As medidas provisórias são recusadas quando os danos que resultariam da sua adoção se mostrem superiores aos que podem resultar da sua não adoção, sem que tal lesão possa ser evitada ou atenuada pela adoção de outras medidas”.

Veja-se que, ao contrário do que sucede com o regime geral do pedido de suspensão de eficácia de ato administrativo, o artigo 103.º-B não contém qualquer solução análoga à do artigo 128.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pelo que o requerimento de adoção de medidas provisórias, mesmo que de suspensão de eficácia, não impede a entidade adjudicante de prosseguir com a execução do ato de adjudicação. Estará por saber se os Tribunais admitirão a possibilidade de o impugnante requerer uma decisão provisória prévia ao exercício do contraditório por parte da entidade adjudicante, à semelhança do que sucede nos termos do artigo 366.º, n.º 1, segunda parte, do Código de Processo Civil.

Perspetiva-se, assim, com esta solução legislativa, uma diminuição drástica dos casos em que o impugnante conseguirá impedir provisoriamente a celebração e a execução do contrato, ou parte dele, relegando-o para a mera fixação de uma indemnização, nos termos do artigo 45.º e 45.º-A do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pela impossibilidade de obter a satisfação do seu interesse. Nestes casos, tem-se entendido jurisprudencialmente que a indenização “não pode corresponder, nem ao interesse contratual negativo [e.g. os custos incorridos com a apresentação da proposta], nem ao interesse contratual positivo [v.g. o benefício que teria recebido se tivesse executado o contrato], mas deve limitar-se a ressarcir o interessado pela perda de oportunidade de obter um resultado favorável no concurso, pelo que tem de ser fixada segundo critérios de equidade”[6]. Entendimento tem sido questionado, sustentando-se que, (i) caso o interessado consiga demonstrar que seria o adjudicatário, a indemnização deve abranger o interesse contratual positivo, e (ii) caso não o consiga, o Tribunal deve “apontar um determinado grau de probabilidade de o concorrente excluído ou preterido ser adjudicatário e, de seguida, fazer incidir esse grau de probabilidade sobre o lucro expectável”, ao abrigo da perda de chance. Estas soluções relegam a indemnização por equidade para os casos em que, devendo a ação impugnatória ter sido procedente, o Tribunal não consegue apurar a probabilidade que o autor teria de ser adjudicatário, caso o procedimento pré-contratual pudesse ter sido retomado[7].

 Duarte Rodrigues Silva

drs@servulo.com



[1] Para as empreitadas de obra pública o limiar está atualmente fixado em €5.548.000; para a locação e aquisição de bens móveis e para a aquisição de serviços, o limiar está atualmente fixado em €144.000, se a entidade adjudicante for o Estado, e em €221.000, nos restantes casos, nos termos dos artigos 19.º e 20.º do Código dos Contratos Públicos.

[2]     Cfr., também neste sentido, António Cadilha, O efeito suspensivo automático da impugnação de atos de adjudicação (art. 103.º-A do CPTA): uma transposição equilibrada da Diretiva Recursos?, in CJA, n.º 119, setembro/outubro 2016, pp. 10 e 11.

[3]     Cfr. o Acórdão do Tribunal de Justiça, de 18 de Julho de 2007, Ministero dell’Industria, del Commercio e dell’Artigianato c. Lucchini SpA, proc. C-119/05, n.º 60.

[4]     Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.° 3/2004, de 25 de Março de 2004, em que se refere que o “princípio estruturante do direito comunitário de interpretação conforme, (…) significa, para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, a obrigação de os juízes nacionais interpretarem o seu direito nacional de modo a harmonizá-lo com o direito originário e derivado de origem comunitária, na medida do possível” – Diário da República, Série I-A, n.º 112, de 13 de maio de 2004.

[5]     Cfr. Duarte Rodrigues Silva, O levantamento do efeito suspensivo no contencioso pré-contratual no quadro da propsota de alteração ao CPTA, in RDA, n.º 3, 2018, pp. 45-46.

[6] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª Edição, Almedina, 2017, p. 299.

[7] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Carlos Fernandes Cadilha, Comentário, pp. 300, 301.

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