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Efeito Diarra: “Justice for Players” e a ação coletiva contra a FIFA

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 19 Ago 2025

No passado mês de outubro de 2024, o Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu uma decisão revolucionária no Caso Lassana Diarra, em que decidiu pela incompatibilidade de várias normas constantes do Regulamento da FIFA sobre o Estatuto e Transferência de Jogadores (“RSTP”) com o direito da União Europeia.

Em síntese, o contexto do caso é o seguinte:

  • Lassana Diarra, jogador de futebol francês, celebrou um contrato de trabalho desportivo com o clube FC Lokomotiv Moscovo.
  • Após um ano, o clube rescindiu o contrato devido a alegadas violações contratuais e apresentou um pedido indemnizatório junto da Dispute Resolution Chamber (“DRC”) da FIFA, nos termos do disposto no artigo 17.º do RSTP[1]. A DRC aceitou apreciar o pedido do clube.
  • Após a rescisão, o jogador recebeu uma proposta do clube Royal Charleroi, condicionada a que (i) Diarra pudesse ser inscrito e jogar na equipa principal do clube em todas as competições organizadas pela FIFA, UEFA e pela Associação Belga de Futebol, e a que (ii) nenhuma indemnização fosse devida pelo Royal Charleroi ao Lokomotiv Moscovo.
  • O jogador não conseguiu garantir essas condições, atento o regime previsto no RSTP.
  • Consequentemente, o jogador propôs uma ação contra a FIFA e contra a Associação Belga de Futebol nos tribunais belgas em 2015, argumentando que o artigo 17.º do RSTP era contrário ao direito da União Europeia, especificamente, ao princípio da livre circulação de trabalhadores.
  • Os tribunais belgas julgaram a ação procedente e a FIFA recorreu dessa decisão para o Tribunal de Justiça. 

Em outubro de 2024, o Tribunal de Justiça proferiu a sua decisão, tendo considerado que o artigo 17.º, n.º 1, do RSTP violava o referido princípio da livre circulação de trabalhadores, previsto no artigo 45.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), na medida em que, ao prever a responsabilidade solidária do novo clube pelo pagamento da indemnização devida pelo jogador ao clube anterior em caso de rescisão do contrato sem justa causa, tal disposição pode desincentivar ou dissuadir os clubes de contratar o jogador por receio de exposição a risco financeiro. 

O Tribunal de Justiça concluiu ainda que esta regra restringia injustificadamente o princípio da livre concorrência imposto pelo direito da União Europeia (artigo 101.º do TFUE), por limitar a contratação de jogadores nesta situação e colocá-los em posição desfavorável face a outros jogadores.

Após a decisão do Tribunal de Justiça, a FIFA iniciou um diálogo global sobre o artigo 17.º do RSTP e suspendeu todos os processos disciplinares relacionados com a aplicação dessa disposição.

Em dezembro de 2024, a FIFA adaptou os seus regulamentos de transferências de forma provisória, com efeitos imediatos na janela de transferências de janeiro. As principais alterações provisórias foram as seguintes:

  • A compensação a pagar pelo jogador ao seu clube anterior em caso de rescisão sem justa causa deve ser calculada tendo em conta os danos sofridos, considerando as circunstâncias individuais de cada caso e com observância da lei do país em questão (a regra anterior previa que a compensação deveria ser calculada considerando a lei do país em questão, a especificidade do desporto e quaisquer outros critérios objetivos);
  • O novo clube do jogador, em caso de rescisão sem justa causa, só assume tal responsabilidade se for provado que induziu a violação do contrato (a regra original previa que o novo clube era automaticamente responsável);
  • A aplicação de sanções desportivas ao novo clube depende de o clube anterior provar que o novo clube induziu a violação do contrato (antes, presumia-se que o novo clube tinha induzido a violação);
  • A federação nacional do clube anterior não pode rejeitar a emissão do Certificado Internacional de Transferência (a regra original previa que a associação nacional do clube anterior podia reter a emissão do Certificado Internacional de Transferências se existisse uma disputa sobre a rescisão contratual).

A decisão do Tribunal de Justiça proferida no caso Diarra abriu assim caminho para uma reestruturação profunda do sistema de transferências no futebol profissional.

Motivada por esta decisão, a fundação holandesa “Justice for Players” iniciou em agosto de 2025 uma ação coletiva contra a FIFA e várias federações nacionais de futebol (Holanda, França, Alemanha, Bélgica e Dinamarca), em representação de ex-jogadores e jogadores profissionais de futebol masculino e feminino, que jogaram em clubes de futebol nos Estados membros da União Europeia e no Reino Unido desde 2002. O fundamento da ação consiste na contrariedade das regras sobre transferências internacionais ao direito europeu, que terá conduzido, em média, a perdas de cerca de 8% dos rendimentos ao longo da carreira de jogadores profissionais de futebol masculino e feminino, desde 2002.

A ação será decidida pelo Tribunal Distrital de Midden-Nederland e o universo potencial de lesados ascende a 100.000 atletas na União Europeia e Reino Unido, resultando num valor global de indemnizações na ordem de vários milhares de milhões de euros.

Nos termos da legislação neerlandesa, todos os jogadores que sofreram danos e residam na Holanda integram automaticamente esta ação judicial, devendo apresentar uma declaração de exclusão caso não pretendam ser incluídos (sistema opt-out). Já os jogadores que não residam na Holanda, mas que tenham jogado ou sido transferidos de, para ou entre clubes europeus entre 2002 e a presente data poderão aderir a esta ação coletiva (sistema opt-in).

A propositura desta ação coletiva representa um marco na evolução jurídica do futebol profissional, colocando a FIFA sob escrutínio direto e pressionando-a a levar a cabo uma reforma estrutural do sistema de transferências internacionais.

Miguel Santos Almeida | msa@servulo.com

Maria Novo Baptista | mnb@servulo.com

 



[1] O referido preceito prevê, entre outros, a atribuição de compensação a pagar pela parte que dá “causa” à justa causa para rescisão do contrato.

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