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O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24.05.2022

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 23 Ago 2022

No passado dia 24 de maio de 2022, foi proferido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo n.º 95/17.8JASTB.E2, que revogou a condenação pelo Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal de um Arguido, professor de Inglês, pelo comportamento por si adotado junto das suas alunas, menores de 14 anos, “que envolveu a introdução uma das suas mãos por dentro da roupa das menores e, em contacto com a pele destas, o toque, a carícia, a massagem no pescoço, peito/tronco, mamilos e barriga”, em uma pena única, em cúmulo jurídico, de 8 anos e seis meses de prisão efetiva pela prática de 20 crimes de abuso sexual de crianças, acrescida da pena acessória de proibição, por vinte anos, do exercício de profissão, emprego, funções ou atividades cujo exercício implique o contacto regular com crianças menores de 14 anos.

Para o Tribunal da Relação de Évora, terá o Tribunal de 1.ª Instância incorrido numa incorreta subsunção dos factos ao Direito, porquanto os atos em causa não terão consubstanciado, a final, a prática de crimes de abuso sexual, à luz do preceituado no artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal.

Ao invés, veio este Tribunal, absolver o Arguido da prática de 9 dos 20 crimes de abuso sexual pelos quais havia sido condenado, pois que considerou que os mesmos não revestiram natureza sexual, apesar de reconhecer que o comportamento adotado pelo Arguido foi “absolutamente desajustado em ambiente escolar, entre professor e aluna”. Entre outras considerações, importa em especial atender à conclusão flagrantemente simplista e deslocada do contexto a que chegou este Tribunal, de que a prática de carícias e cócegas às crianças em questão, menores de 14 anos, “por cima da roupa que as mesmas envergavam, na zona do peito/tronco, barriga e ombros”, não terá detido natureza sexual, porquanto, nestes termos, as cócegas correspondem a “modo vulgar de estabelecer contacto e de brincar com crianças das idades das referidas menores”, e as carícias a “festas e mimos”.

Ademais, vem o Arguido condenado em uma pena única de quatro anos e sete meses de prisão, suspensa na sua execução por cinco, sujeita a regime de prova a determinar pela Direção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, a par de uma pena acessória de proibição do exercício de profissão, emprego, funções ou atividades cujo exercício implique o contacto regular com crianças menores de catorze anos, também por cinco anos, pela prática de 11 crimes de importunação sexual de crianças, na modalidade de constrangimento a contacto de natureza sexual, à luz do disposto nos artigos 170.º e 171.º, n.º 3, alínea a), do Código Penal.

Ora, o crime de abuso sexual de crianças vem previsto no artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, nos termos do qual “quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”. Por sua vez, dispõe o artigo 170.º do referido Código que “quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”, sendo que, nos termos do disposto no artigo 171.º, n.º 3, alínea a), vem prevista a pena mais grave de prisão até três anos a “quem importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º”.

Considerou então o Tribunal da Relação de Évora que, mesmo os atos praticados pelo Arguido que, no seu entendimento, revestiram cariz sexual, por terem sido praticados em zonas determinadas do corpo das vítimas e bem assim por baixo das suas roupas, não detêm o relevo exigido para efeitos da verificação de crimes de abuso sexual,  mas antes de importunação sexual, por não constituírem entrave significativo à livre determinação sexual das vítimas, atenta a sua frequência (atos praticados somente uma vez com cada vítima) e publicidade (que ocorreram nas instalações da escola, um espaço público), e bem assim a suscetibilidade de terem “deixado dúvida, em meninas tão jovens, quanto ao seu propósito”.

Tais considerações, parcamente fundamentadas por este Tribunal de 2.ª Instância e resultado de uma posição manifestamente condescendente e deliberadamente alheia à gravidade e impacto que os comportamentos adotados pelo Arguido podem comportar para as suas vítimas, assumida por este Tribunal, dificilmente poderão, no nosso entendimento, vingar. Em especial, no que respeita ao terceiro critério, resulta este absolutamente desprovido, em absoluto, de qualquer fundamento, atento o facto de se tratarem os crimes de importunação e de abuso sexual de crianças de crimes de perigo abstrato e de mera atividade, isto é, cujo preenchimento do tipo não depende da sua repercussão subjetiva na vítima.

Vem este aresto corporizar a dificuldade de densificação dos conceitos de “ato sexual” e de “ato sexual de relevo”, adotados pelo legislador para distinguir a gravidade das condutas ofensivas da autodeterminação sexual, designadamente, da criança, e perante os quais está o julgador imbuído de considerável margem de apreciação, gerando disparidades na jurisprudência (e doutrina) nacional, o que se afigura flagrantemente indesejável, atento o bem jurídico cuja tutela é visada - a liberdade de autodeterminação sexual da criança.

Exemplifica também este Acórdão a tendência que tem vindo a ser identificada nos Tribunais portugueses para, em nome das finalidades da prevenção especial e da reintegração social dos infratores penais serem aplicadas, defronte da prática de crimes desta natureza, penas de duração reduzida, que permitem e comumente dão lugar à sua substituição por uma pena suspensa, nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal, mesmo que confrontados com a prática de um número significativo de crimes e sem que o Arguido os haja sequer reconhecido, como é o caso, fazendo prevalecer considerações de “desonra” autoinfligida ao Arguido sobre a justiça penal e os bens jurídicos sobre os quais vem erigida.

Por fim, cumpre notar que, independentemente da discussão em torno da densificação dos conceitos referidos e consequente subsunção dos atos praticados pelo Arguido, sempre padece, em nosso entender, o Acórdão proferido de erro de julgamento, porquanto, apesar de vir o Tribunal da Relação de Évora expressamente subsumir os atos praticados ao crime de importunação sexual de crianças, punível com pena de prisão até 3 anos, reporta-se este – erroneamente -, para efeitos da determinação da medida da pena aplicável, à moldura penal estatuída para os crimes de importunação sexual nos termos gerais, fixada entre um mês e um ano de prisão ou multa entre 10 e 120 dias.

Cláudia Amorim | ca@servulo.com

Inês Pereira Lopes | ipl@servulo.com

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