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O novo regime aplicável aos Dispositivos Médicos

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 23 Mai 2017

O regime jurídico dos dispositivos médicos na União Europeia vai ser objeto de uma profunda reforma, com a próxima entrada em vigor, a 25 de Maio de 2017, de dois novos regulamentos: (i) o Regulamento (UE) n.º 2017/745 do Parlamento Europeu e do Conselho, que vai revogar a histórica Diretiva-base dos dispositivos médicos (93/42/CEE); e o Regulamento (UE) n.º 2017/746/UE, que revoga a diretiva dos dispositivos médicos para diagnóstico in vitro (DIV: 98/79/CE).

É impossível neste contexto, dar uma abordagem completa das modificações introduzidas pelos novos regulamentos. Salientem-se apenas, desde já, alguns aspetos.

Primeiro. Uma modificação da noção de dispositivo médico, para a qual são relevantes funções como as de “monitorização, previsão ou prognóstico”, cujo impacto na realidade da eHealth e na mHealth não pode ser desprezado. Sendo muitas as alterações ou clarificações, consoante os casos, salienta-se aqui a expressa qualificação do software como dispositivo médico (o que não é novo, em si) ou como dispositivo médico ativo, ao mesmo tempo que, nas suas disposições preambulares, o Regulamento 2017/745/UE considera que «o software de uso geral, mesmo quando utilizado num contexto de saúde, ou o software previsto para fins relacionados com o estilo de vida e o bem-estar, não são um dispositivo médico. A qualificação de um software, quer como dispositivo quer como acessório, deverá ser independente da localização do software ou do tipo de interconexão entre este e um dispositivo» (n.º 19).

Em concreto, do regulamento resulta que «os dispositivos que tenham uma finalidade prevista tanto médica como não médica cumprem todos os requisitos aplicáveis aos dispositivos com finalidade médica prevista e os requisitos aplicáveis aos dispositivos sem finalidade médica prevista» (artigo 1.º, n.º 3), podendo a Comissão alterar a lista de grupos de produtos que, sendo ou não dispositivos, apresentem semelhanças quanto às características ou níveis de risco» (artigo 4.º).

Segundo. Pela primeira vez, o regulamento contém regras aplicáveis à classificação de produtos-fronteira (borderline products), quer do ponto de vista externo, face aos medicamentos (sem se sobrepor ao regime da Diretiva 2001/83/CE) ou aos produtos cosméticos; quer do ponto de vista interno, criando mecanismos para uniformização classificatória em caso de divergências entre os Estados membros e a pedido de um destes. Ponto é que o critério utilizado para a distinção face aos medicamentos não é conforme ao critério previsto na legislação dos medicamentos, tendo o regulamento seguido o critério do «principal modo de acção» (artigo 1.º, n.º 6, alínea b), e 9), o que gerará, antevemos, problemas prático-jurídicos nos próximos anos, à luz dos cânones da interpretação jurídica.

Terceiro. O Regulamento pretende harmonizar o regime de marcação CE e avaliação de conformidade do regime de nouvelle aproche na sua formulação de 2008, com o Novo Quadro de Comercialização de Produtos, que aliás era subsidiariamente aplicável no que não fosse afastado pela legislação específica dos dispositivos (v.g. artigo 15.º do Regulamento (CE) n.º 765/2008). E estabelece um regime mais facilitado para dispositivos médicos fabricados ou utilizados numa instituição de saúde, “sem ser a uma escala industrial”. No que parece inspirar-se em regimes homólogos em relação a outros produtos de saúde.

Quarto. Novidade é a regulamentação do regime das vendas à distância (artigo 6.º), mas também do comércio paralelo, da rastreabilidade dos dispositivos através do sistema de identificação única dos dispositivos (UDI), o desenvolvimento da Eudamed ou das investigações clínicas referentes aos dispositivos médicos e acessórios efetuadas na União.

Quinto. Quanto à venda à distância, o regulamento recorda ser «essencial que os dispositivos oferecidos às pessoas na União através de serviços da sociedade da informação, na aceção da Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, e os dispositivos utilizados no contexto de uma atividade comercial destinados a prestar às pessoas um serviço de diagnóstico ou terapêutico na União, cumpram os requisitos do presente regulamento quando o produto em questão é colocado no mercado ou quando o serviço é prestado na União» (n.º 22). Mas mesmo os que não são colocados no mercado “mas são usados no contexto de uma atividade comercial, a troco de pagamento ou gratuitamente, com vista ao fornecimento de um diagnóstico ou de um serviço terapêutico oferecidos através de serviços da sociedade da informação” (artigo 6.º, n.º 2), devem cumprir o regulamento.

Sexto. O quadro das obrigações dos fabricantes é claramente desenvolvido face ao quadro anterior (artigo 10.º), mormente quanto ao sistema de gestão de qualidade, ao sistema de monitorização pós-comercialização (v.g. artigo 83.º) ou ao sistema de registo e notificação de incidentes e ações corretivas de segurança (v.g. artigos 87.º-88.º). É também estabelecido o regime do mandatário único na UE – para assegurar as obrigações no espaço da União quando os fabricantes não estejam estabelecidos na União –, dos importadores (artigo 13.º) e dos distribuidores (artigo 14.º), todos convergindo num regime de rastreabilidade que poderá ter implicações na livre comercialização de dispositivos médicos na União (v.g. sistema eletrónico de registo de operadores económicos – artigos 30.º, 31.º).

Sétimo. Novidades no regulamento são também o sistema do cartão de implante, o regime do reprocessamento e reutilização de dispositivos de uso único (artigo 17.º) ou os requisitos de avaliação clínica (artigo 61.º) e aplicáveis à investigação clínica de dispositivos (artigo 62.º e seguintes). Aqui as alterações terão um grande impacto regulatório, afetando grandemente os regimes nacionais, que soçobram em grande medida por força da natureza jurídica própria dos regulamentos comunitários (rectius, da União) que se aplicam diretamente na ordem jurídica nacional e não podem ser contrariados ou sequer repetidos por normas jurídicas nacionais.

Oitavo. Em relação aos dipositivos de elevado risco, mesmo que para fins estéticos, o Regulamento estipula controlos mais rigorosos a nível de controlo pré-comercialização (ex. implantes, lentes de contacto coloridas, equipamento para lipoaspiração). Ademais, a nova legislação introduz requisitos específicos no tocante a software, dispositivos que incorporem derivados de células ou tecidos não viáveis de origem humana e testes genéticos preditivos.

Em suma, os novos regulamentos irão provocar uma reforma radical do regime jurídico aplicável aos dispositivos médicos, antevendo-se uma revogação a prazo quer do Decreto-Lei n.º 145/2009 quer das normas relevantes para os dispositivos médicos da atual lei da investigação clínica.

Apesar da próxima entrada em vigor, a aplicação dos regulamentos é diferida no tempo, devido ao impacto das alterações, quer no plano regulatório, quer da estruturação e funcionamento dos operadores económicos. Assim, a aplicação genérica do regulamento 2017/745/UE acontecerá apenas em 26 de Maio de 2020, mas algumas disposições irão sendo aplicáveis ainda antes (v.g. artigo 123.º) ou depois (nalguns casos, até em 2027). Quanto ao Regulamento (UE) n.º 2017/746/UE, relativo aos DIV, a data principal será 26 de Maio de 2022 (v.g. artigo 113.º).

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