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Acórdão do Tribunal de Justiça Superleague e as regras da FIFA e da UEFA relativas a competições entre clubes de futebol organizadas por terceiros

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 28 Dez 2023

O mundo de futebol sofreu uma comoção com a recente pronúncia do Tribunal de Justiça no já famoso processo Superleague, que deu origem a díspares interpretações e hipotéticas ilações. Sete dias passados, já é possível uma visão mais clara e equilibrada do acórdão.

O contexto era conhecido. Em 2021, a 18 de abril, 12 clubes de futebol europeus[1], agindo através da European Superleague Company (“ESC”), uma empresa espanhola, anunciaram a intenção de criar uma nova competição de futebol, a Super Liga, que funcionaria a par da Liga dos Campeões da UEFA e das competições nacionais europeias.

Este anúncio foi recebido com oposição pela FIFA e pela UEFA, que organizam as principais competências futebolísticas masculinas – e não só – a nível global e europeu. As reações foram duras, incluindo a ameaça de sanções a clubes e jogadores que decidissem participar nesta nova competição.

Em contra-ataque, a ESC intentou uma ação contra a FIFA e a UEFA no Tribunal de Comércio de Madrid alegando que as regras mencionadas da FIFA e da UEFA são contrárias ao direito da União Europeia. Foi neste quadro que, ao abrigo do chamado reenvio prejudicial, o tribunal espanhol colocou ao Tribunal de Justiça, tribunal superior da União Europeia, questões de interpretação que foram respondidas através do acórdão de 21 de dezembro de 2023[2].

I. O Acórdão Superleague

O que era perguntado? Embora o Tribunal de Justiça só possa interpretar o direito da União e não possa resolver ele próprio o litígio que corre – no caso – no tribunal espanhol, o Tribunal de Madrid colocou 6 questões ao Tribunal de Justiça que, no fundo, pretendiam obter a clarificação do Tribunal de Justiça sobre se as regras da FIFA e da UEFA violavam o tratado europeu nas matérias da concorrência e da liberdade de prestação de serviços, quanto aos seguintes pontos:

  • Se a necessidade de autorização prévia pela FIFA e pela UEFA para que um terceiro possa organizar competições entre clubes de futebol, viola os artigos 101.º (como um todo) ou 102.º (abuso de posição dominante),  ou das liberdades de circulação (artigos 45.º, 49.º, 56.º ou 63.º), todos do Tratado;
  • Se esses mesmos artigos se opõem à ameaça de sanções a clubes e jogadores que participem nessas competições organizadas por terceiros? E se essas sanções são, como aí previstas, compatíveis com os artigos referidos?
  • Se as regras sobre a titularidade e exploração económica dos direitos de transmissão associados a estas competições são também compatíveis com as referidas normas do tratado.

As respostas não deixaram de causar alguma surpresa na opinião pública, na medida em que foram contrárias às propostas pelo advogado-geral Rantos, nas conclusões que tinha apresentado a 15 de dezembro de 2022 neste mesmo processo C-333/21. Mas não é surpreendente em si mesmo, desde logo porque não há qualquer vinculação do Tribunal de Justiça às conclusões dos advogados-gerais. Mesmo num processo tão rico como este, em que o advogado-geral se pronunciou depois de ouvir as 31 entidades que apresentaram observações, incluindo 22 Estados membros da União e 2 Estados do Espaço Económico Europeu!

No seu acórdão, o Tribunal de Justiça desenvolve a sua jurisprudência tradicional e chega a uma constatação óbvia. Embora alguns aspectos da regulação do desporto não tenham uma natureza económica, a organização de competições de futebol e a exploração dos respetivos direitos de transmissão são atividades económicas e, como tal, sujeitas aos princípios da livre concorrência e da liberdade de circulação. Mas isso não significa que sejam irremediavelmente ilegítimas, pois dadas as característias do futebol profissional, “it is legitimate to subject the organisation and conduct of international professional football competitions to common rules intended to guarantee the homogeneity and coordination of those competitions within an overall match calendar as well as, more broadly, to promote, in a suitable and effective manner, the holding of sporting competitions based on equal opportunities and merit. It is also legitimate to ensure compliance with those common rules through rules such as those put in place by FIFA and UEFA on prior approval of those competitions and the participation of clubs and players therein”, pelo que «such rules on prior approval and participation are thus legitimate in the specific context of professional football and the economic activities to which the practice of that sport gives rise, neither their adoption nor their implementation may be categorised, in terms of their principle or generally, as an ‘abuse of a dominant position’”, o mesmo se podendo dizer quanto às “sanctions introduced as an adjunct to those rules, since such sanctions are legitimate, in terms of their principle, as a means of guaranteeing the effectiveness of those rules” (§§144-146).

É depois disto que o Tribunal de Justiça – uma vez mais – foca a sua atenção no que nos parece ser o juízo de proporcionalidade. Se é verdade que a FIFA e a UEFA dispõem de posição dominante no acesso a esses mercados e actividades, isso significa que, dado o potencial risco de conflito de interesses, o poder de determinar as condições de acesso ao mercado deve estar sujeito a critérios que garantam o seu exercício de forma transparente, objetiva, não discriminatória e proporcional. Ora, para o Tribunal de Justiça, nem a FIFA nem a UEFA respeitam tais critérios, e é isso que o faz declarar existir um abuso de posição dominante por parte destas mesmas FIFA e UEFA e que, além disso, as respectivas regras constituem decisões de associação de empresas restritivas da concorrência.

Mas o Tribunal de Justiça não fica por aí e estende a sua doutrina também para as liberdades fundamentais de circulação, declarando que as mesmas constituem restrições injustificadas às liberdades de ciruclaçao de trabalhadores, estabelecimento e serviços garantidas pelo mesmo tratado.

Finalmente, o Tribunal de Justiça declara que as regras da FIFA e da UEFA relativas à exploração dos direitos de transmissão são lesivas para os clubes, as empresas de transmissão, os consumidores e os telespectadores, impedindo-os de desfrutar de competições novas e potencialmente inovadoras ou interessantes.

II. Comentário breve

As pronúncias do Tribunal de Justiça em sede de reenvio prejudicial não resolvem o litígio que corre no tribunal nacional nem têm, formalmente, efeitos para lá do processo. Contudo, a sua força de precedente é inequívoca e o efeito de uniformização da interpretação do direito da União Europeia em causa é inquestionável. Em todo o caso, caberá ao tribunal nacional espanhol decidir o caso concreto.

Saliente-se que o Tribunal de Justiça não pôs em causa os poderes da FIFA e da UEFA para aprovar e controlar as competições nem para aplicar sanções. O Tribunal de Justiça apenas constatou que as regras que regulam estes poderes, tal como configuradas, não permitem um exercício transparente, objetivo não discriminatório e proporcional dos mesmos.

Assim, se a FIFA e a UEFA alterarem as suas regras em conformidade com as novas exigências do Tribunal de Justiça poderão, em rigor, continuar a controlar a organização por terceiros de competições entre clubes de futebol. Aliás, poderão fazê-lo em conformidade com o Direito da União! 

Miguel Gorjão-Henriques | mgh@servulo.com

Pedro Almeida e Brito | pab@servulo.com

 

______________

[1] Club Atlético de Madrid, Fútbol Club Barcelona, Real Madrid Club de Fútbol, Associazione Calcio Milan, Football Club Internazionale Milano, Juventus Football Club, Arsenal Football Club, Chelsea Football Club, Liverpool Football Club, Manchester City Football Club, Manchester United Football Club e Tottenham Hotspur Football Club. Destes, só se mantiveram ligados ao projeto o Barcelona e o Real Madrid.

[2] Acórdão do Tribunal de Justiça de 21.12.2023, European Superleague Company, proc. C-333/21, EU:C:2023:1011.

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