Atenção, o seu browser está desactualizado.
Para ter uma boa experiência de navegação recomendamos que utilize uma versão actualizada do Chrome, Firefox, Safari, Opera ou Internet Explorer.

Arbitragem desportiva e Direito da União: o Acórdão RFC Seraing e o fim da “imunidade” do CAS/TAS?

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 06 Ago 2025

“Para o bem ou para o mal, poucas paixões são tão ampla e profundamente partilhadas em todo o mundo como a paixão pelo desporto. O seu simbolismo é muitas vezes impressionante. Faz sobressair as qualidades humanas mais nobres (o bom espírito desportivo, a procura da excelência, o sentido de comunidade) e as mais vis (a chicana e a violência popular). É também um grande negócio internacional. A sua capacidade de motivar vastas populações é, no mínimo, extraordinária, pelo que, naturalmente, exerce uma poderosa atração sobre aqueles que pretendem utilizar a sua magia para os seus próprios fins. O desejo de influência política e de dinheiro move o coração do empresário com uma força tão primordial como a dos sonhos de glória do maratonista. […] E, no centro da questão do controlo, figura a autoridade suprema para estabelecer normas e resolver litígios. Em causa no presente processo está a questão do controlo: mais concretamente, a relação entre o sistema de resolução de litígios da FIFA perante o Tribunal Arbitral do Desporto e o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrada no direito da União”[1].

 1. Considerações introdutórias

O Tribunal de Justiça da União Europeia (“Tribunal de Justiça” ou “TJ”), na formação que utiliza para os processos mais complexos (a chamada Grande Secção), proferiu no passado dia 1 de agosto de 2025 um acórdão com implicações profundas no modelo de arbitragem desportiva internacional atualmente vigente, abordando de modo direto o estatuto das decisões do Tribunal Arbitral do Desporto sediado em Lausanne (“CAS/TAS”). Em causa o processo C-600/23, Royal Football Club Seraing v. FIFA[2], que levou o Tribunal a pronunciar-se sobre se as regras do CAS respeitam os princípios fundamentais do Direito da União Europeia, mormente os artigos 19.º do Tratado da União Europeia e 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais, e os princípios estruturantes da ordem pública da União Europeia. 

Ao fazê-lo, o Tribunal emitiu um juízo claro sobre a compatibilidade do atual modelo de processo aplicado naquele tribunal com o Direito da União Europeia.

2. Antecedentes do Acórdão

Em 2015, o clube belga Royal Football Club Seraing (“RFC Seraing) celebrou acordos de financiamento com a sociedade maltesa Doyen Sports Investments, nos quais se previa a transferência para esta última de uma parte dos direitos económicos de determinados jogadores do clube belga, prática conhecida por third-party ownership (TPO).

Os acordos em questão foram subsequentemente considerados pela FIFA como violadores da proibição imposta a terceiros de deterem direitos económicos sobre jogadores, conforme estabelecido nos artigos 18.º-bis e 18.º-ter do então Regulamento da FIFA sobre o Estatuto e Transferência de Jogadores (“RETJ”). Tal entendimento conduziu à aplicação de diversas sanções ao clube RFC Seraing por parte da FIFA, incluindo a proibição de inscrever novos jogadores durante vários períodos de inscrição, bem como a imposição de uma coima no valor de 150 000 francos suíços (CHF).

O clube belga reagiu e interpôs recurso da decisão da FIFA junto do CAS, instância internacional competente para a resolução de litígios desportivos. As sanções  foram confirmadas por aquele Tribunal[3] e, posteriormente, pelo Tribunal Federal Suíço[4] (ambos tribunais de um país que não faz parte da União Europeia)[5].

Contudo, o RFC Seraing e a Doyen Sports Investments não se deram por vencidos e intentaram uma ação, nos tribunais belgas, com o intuito de obter uma decisão que declarasse a ilegalidade da proibição absoluta das práticas vedadas pelo artigo 18.º do RETJ, à luz do Direito da União Europeia. Alegaram, em concreto, que tal proibição constituía uma violação de normas fundamentais do Direito da União Europeia, como o princípio da livre circulação de capitais, da livre prestação de serviços, da livre circulação de trabalhadores e das normas em matéria de concorrência[6].

Ora, o Cour d’appel de Bruxelles (Tribunal de Recurso de Bruxelas), chamado a decidir sobre a questão, proferiu acórdão no qual entendeu que a decisão arbitral do CAS havia transitado em julgado, adquirindo força de caso julgado (res judicata), razão pela qual se declarou impossibilitado de apreciar a questão[7].

Inconformado, o RFC Seraing recorreu daquele acórdão para a Cour de cassation de Belgique (Tribunal de Cassação da Bélgica), o órgão jurisdicional de reenvio, que, atentas as as dúvidas existentes – entre as quais se destacavam a conformidade do sistema arbitral desportivo com os princípios da ordem pública da União, a força vinculativa de um laudo confirmado na Suíça sobre os tribunais de um Estado membro e a possibilidade de garantir o reenvio prejudicial ao TJ em contextos de arbitragem imposta estatutariamente – decidiu submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1) Opõe-se o artigo 19.o, n.o 1, [TUE], lido em conjugação com o artigo 267.o [TFUE] e com o artigo 47.o da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, à aplicação de disposições de direito nacional como os artigos 24.o e 1713.o, n .o 9, do Code judiciaire belge [Código Judiciário belga], que preveem o princípio da autoridade do caso julgado, a uma sentença arbitral cuja fiscalização da conformidade com o direito da União Europeia foi efetuada por um órgão jurisdicional de um Estado que não é membro da União [Suíça], que não pode submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia?

2) Opõe-se o artigo 19.o, n.o 1, [TUE], lido em conjugação com o artigo 267.o [TFUE] e com o artigo 47.o da [Carta], à aplicação de uma norma de direito nacional que confere força probatória em relação a terceiros, sob reserva de prova em contrário a apresentar pelos mesmos terceiros, a uma sentença arbitral cuja fiscalização da conformidade com o direito da União Europeia foi efetuada por um órgão jurisdicional de um Estado que não é membro da União, que não pode submeter uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia?»

 3. Análise do Tribunal de Justiça

Em termos fundamentais, a questão era a de saber se os tribunais dos Estados membros podem considerar vinculativas sentenças arbitrais proferidas por um país terceiro à União Europeia, mesmo quando as partes envolvidas não tiveram a oportunidade de exercer plenamente os seus direitos ao abrigo do Direito da União Europeia.

Ora, importa salientar que, no caso em análise, a decisão do CAS teve origem num mecanismo arbitral imposto unilateralmente por uma federação desportiva internacional – a FIFA – responsável pela regulamentação  das regras desportivas aplicáveis ao desporto, mormente ao futebol. A existência de um mecanismo arbitral de natureza impositiva, e não voluntária (isto é, não resultante de um acordo livremente celebrado entre as partes), é uma realidade recorrente nos litígios decorrentes da atividade desportiva, como o próprio Tribunal de Justiça reconhece. Neste âmbito, assinalou aquele Tribunal que deve ser feita uma distinção entre arbitragem necessária e voluntária.

Na sua apreciação, o Tribunal de Justiça afirmou que não se pode admitir que, mediante o recurso à arbitragem, os particulares se possam subtrair aos princípios e às disposições do direito primário ou derivado da União que revistam caráter essencial para a arquitetura jurisdicional da União e para a salvaguarda da sua ordem pública, os quais devem, por conseguinte, ser sempre respeitados. Tal é precisamente o caso das normas em matéria de concorrência (artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – TFUE) e das disposições relativas à livre circulação, que produzem efeitos diretos horizontais (artigos 45.º, 56.º e 63.º do TFUE).

Com efeito, sublinhou o Tribunal de Justiça que nos casos em que uma sentença tenha sido proferida no âmbito de um litígio relacionado com o exercício de um desporto, enquanto atividade económica no território da União, e em que não tenha sido prevista uma via de recurso direta contra essa sentença num órgão jurisdicional de um Estado membro, deve existir a possibilidade de os particulares em causa obterem, a título incidental, por parte de um órgão jurisdicional de um Estado membro, a fiscalização jurisdicional efetiva sobre a questão de saber se a referida sentença arbitral é compatível com os princípios e as disposições que fazem parte da ordem pública da União.

Nesta linha de raciocínio, concluiu o Tribunal que, na ausência dessa fiscalização jurisdicional, ou caso a mesma não revista carácter efetivo, não é assegurada a tutela jurisdicional efetiva dos particulares envolvidos.

Adicionalmente, o Tribunal de Justiça frisou que os tribunais nacionais não apenas podem, mas devem, adotar medidas provisórias eficazes que garantam a plena aplicação do Direito da União e — elemento particularmente relevante — devem igualmente assegurar que a submissão a arbitragem privada não pode excluir a possibilidade de submeter questões prejudiciais ao TJ, nos termos previstos no artigo 267.º do TFUE.

Dois fundamentos jurídicos estruturantes emergem deste acórdão do Tribunal de Justiça.

Primeiro, a reiteração de que a ordem pública da União Europeia inclui não apenas o direito de acesso a um tribunal independente, mas também as normas do TFUE em matéria de concorrência e de livre circulação. O Tribunal deixou claro que estes princípios não podem ser derrogados por convenções arbitrais ou cláusulas estatutárias, mesmo quando consagradas por organismos internacionais com sede fora da União. O primado do Direito da União impõe-se mesmo perante a autoridade de caso julgado que decorra de decisões de tribunais de países terceiros à União.

Segundo, a defesa do mecanismo do reenvio prejudicial como instrumento essencial para assegurar a interpretação uniforme do Direito da União. Para o Tribunal, é fundamental preservar a possibilidade de se utilizar o mecanismo do artigo 267.º do TFUE. Se um sistema arbitral impedir na prática essa possibilidade, isso configura uma violação do artigo 267.º do TFUE e, por conseguinte, justifica o afastamento das normas que sustentam tal sistema.

Em suma, o Tribunal de Justiça declarou que as disposições do direito nacional belga que erigem a força de caso julgado atribuída às decisões arbitrais do CAS como causa impeditiva da revisibilidade de tais decisões à luz do Direito da União são incompatíveis com este, na medida em que a aplicação de tais regras priva os particulares afetados da possibilidade de obterem dos tribunais dos Estados membros a fiscalização jurisdicional efetiva de tais sentenças, à luz do Direito da União.

A decisão do Tribunal de Justiça não anula a decisão arbitral proferida pelo CAS, mas retira-lhe a autoridade de caso julgado, tornando-a suscetível de recurso junto dos tribunais belgas. Deste modo, os particulares envolvidos passam a dispor da oportunidade de invocar perante os tribunais belgas a alegada violação de princípios e disposições do Direito da União Europeia, como a livre circulação de capitais, a livre prestação de serviços, a livre circulação de trabalhadores e o direito da concorrência.

4. Implicações para o sistema desportivo e arbitral

Este acórdão introduz um novo paradigma no equilíbrio entre autonomia desportiva, arbitragem privada e respeito pelo quadro jurídico da União Europeia.

Em primeiro lugar, os clubes, atletas e outros agentes desportivos passam a ver-lhes reconhecida uma via jurisdicional interna para impugnar decisões arbitrárias proferidas no seio de estruturas como o CAS, sempre que estejam em causa direitos ou princípios protegidos pelo Direito da União.

Em segundo lugar, as federações desportivas, incluindo a FIFA, deverão rever os seus regulamentos que imponham de forma exclusiva a arbitragem no CAS, sob pena de as respetivas decisões poderem ser anuladas ou inaplicadas pelos tribunais nacionais. Também o próprio CAS poderá ver-se obrigado a repensar o seu regulamento de processo, de modo a garantir o respeito pelo Direito da União.

Em último lugar, o acórdão projeta efeitos relevantes sobre a prática da arbitragem no desporto em geral. O facto de o CAS estar sediado na Suíça e de as suas decisões serem reconhecidas como definitivas deixa de ser suficiente para lhes conferir uma “imunidade” perante a ordem jurídica da União. Um efeito prático poderá vir a ser um aumento do contencioso nos tribunais dos Estados membros, especialmente em domínios sensíveis como os transfer bans, as sanções disciplinares ou, como no caso em análise, a proibição da third-party ownership.

A decisão faz, assim, renascer o debate quanto à legalidade da proibição do TPO imposta pela FIFA, recolocando o tema na agenda jurídica desportiva, ao reafirmar, também nesse tocante, que qualquer restrição a uma liberdade económica tem de poder ser objeto de um escrutínio adequado perante os tribunais da União e à luz das normas do TFUE. A decisão não declarou a ilegalidade da proibição do TPO, mas abriu espaço — e criou instrumentos — para que a sua compatibilidade com o Direito da União possa vir a ser reapreciada.

5. Conclusão

O acórdão RFC Seraing v. FIFA representa um ponto de viragem na forma como o Direito da União se articula com o modelo arbitral no desporto internacional. Ao sublinhar a centralidade da ordem pública da União e do princípio da tutela jurisdicional efetiva, o Tribunal de Justiça afasta o véu protetor que durante décadas envolveu o sistema do CAS. Para os operadores do setor desportivo, clubes, atletas, federações e advogados, impõe-se uma reavaliação cuidada dos regulamentos em vigor, das convenções arbitrais e das estratégias de litigância. A arbitragem continua a ser uma ferramenta essencial no desporto global, mas não pode ser vista como um reduto imune ao escrutínio judicial europeu, nem muito menos como um atropelo à tutela jurisdicional efetiva.

Miguel Gorjão-Henriques | mgh@servulo.com

Miguel Santos Almeida | msa@servulo.com

Maria Novo Baptista | mnb@servulo.com

Miguel Máximo dos Santos | mxs@servulo.com



[1] Conclusões da advogada-geral Capeta, apresentadas em 16.1.2025, Royal Football Club Seraing, proc. C?600/23, EU:C:2025:24, n.os 1 e 2, disponíveis em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=294268&mode=req&pageIndex=1&dir=&occ=first&part=1&text=&doclang=PT&cid=23464524, que citam  J. Paulsson, “Arbitration of international sports disputes”, Arbitration International, Vol. 9(4), 1993, p. 359.

[2] Acórdão do Tribunal de Justiça de 1.8.2025, Royal Football Club Seraing, proc. C?600/23, EU:C:2025:24, disponível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=303003&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=11454640.

[3] Sentença de 9.3.2017, processo n.º TAS 2016/A/4490.

[4] Decisão de 20.2.2018, processo n.º 4A_260/2017.

[5] Acórdão do Tribunal de Justiça de 1.8.2025, Royal Football Club Seraing, cit, n. os 29 a 41.

[6] Mais concretamente, procuraram a Doyen Sports e o RFC Seraing demonstrar a responsabilidade da FIFA, da UEFA e da URBSFA, alegando que aquelas violaram o Direito da União, na medida em que tinham sido impedidas de celebrar convenções «third party investment» ou «third party ownership», que essa violação do Direito da União as tinha privado de um meio de financiamento ou de desenvolvimento e que as sanções disciplinares tinham tido consequências prejudiciais para ambos (conclusões da advogada-geral Capeta, de 16.1.2025, Royal Football Club Seraing, cit., n.os 23 e 26).

[7] Conclusões da advogada-geral Capeta, cit., n.ºs 27 a 34; e acórdão do Tribunal de Justiça, cit., n.os 43 a 50.