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Entre capital próprio e dívida: o Regime Jurídico dos Empréstimos Participativos

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 03 Fev 2022

1. Contexto

No passado dia 12 de janeiro de 2022, foi publicado o Decreto-Lei n.º 11/2022, de 12 de janeiro que estabelece o Regime Jurídico dos Empréstimos Participativos (doravante, “RJEP”). O RJEP entrou em vigor no dia 13 de janeiro de 2022.

Este regime consiste na introdução de um mecanismo híbrido de financiamento às empresas, no âmbito da aposta, assumida pelo Governo de Portugal, da diversificação das fontes de financiamento disponíveis e na redução da sua dependência ao sistema bancário. Assim, os empréstimos participativos juntam-se a outros tipos de financiamento híbridos, entre o capital próprio e a dívida, ou de quase-capital.

O novo regime, concedendo a possibilidade da conversão de créditos em capital, traduz-se num expediente de financiamento alternativo às empresas que apresenta diversas virtualidades.

2. A noção de “empréstimo participativo”

O RJEP define empréstimo participativo como um contrato de crédito oneroso, sob a forma de mútuo ou sob a forma de títulos representativos de dívida, cuja remuneração e reembolso ou amortização dependem, ainda que parcialmente, do resultado da atividade do mutuário e cujo valor em dívida pode ser convertido em capital social do mutuário (cfr. artigo 2.º, n.º 1 do RJEP).

Assim, o empréstimo será considerado capital próprio sempre que a respetiva remuneração se encontre dependente dos resultados do mutuário e o respetivo reembolso ou amortizações sejam apenas feitos com fundos que, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, possam ser distribuídos aos sócios.

3. Mutuantes e mutuários elegíveis

O RJEP procede à concretização das entidades habilitadas à concessão destes empréstimos (os “mutuantes”), restringindo (a) às Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, (b) aos Organismos de Investimento Alternativo Especializado de Créditos, de Capital de Risco e de Empreendedorismo Social, (c) às Sociedades de Investimento Mobiliário para Fomento da Economia (“SIMFE”), (d) ao Fundo de Capitalização e Resiliência[1] e (e) às outras entidades que estejam habilitadas à concessão de crédito a título profissional. Admite-se, todavia, uma grande latitude na cessão dos créditos resultantes dos empréstimos participativos a terceiros.

Por outro lado, podem contrair empréstimos participativos todas as sociedades comerciais do setor não financeiro (o “mutuário”).

4. Forma, formalidades e finalidade do empréstimo participativo

A celebração de empréstimos participativos assume diferentes exigências de forma consoante consista num contrato de mútuo ou na emissão de títulos representativos de dívida. Se quanto aos primeiros, se exige sempre a forma escrita, aos segundos aplica-se o regime relativo à emissão de valores mobiliários. Note-se que estas exigências são dispensadas durante a pendência de qualquer processo de reestruturação de empresas previsto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”).

Em qualquer dos casos, a celebração dos empréstimos participativos depende de deliberação prévia, expressa e favorável da assembleia geral do mutuário, e o contrato ou a emissão de títulos representativos de dívida deve mencionar expressamente a sujeição ao RJEP.

As finalidades dos empréstimos participativos devem ser fixadas no contrato a celebrar ou nas condições de emissão dos títulos representativos de dívida e podem consistir no seguinte (cfr. artigo 5.º do RJEP):

a)     O financiamento de investimentos;

b)     O reforço de fundo de maneio;

c)     O reembolso de dívida anterior; ou

d)     Qualquer outra finalidade acordada, desde que compatível com os objetos sociais ou com políticas de investimento das partes.

5. Regime insolvencial aplicável ao mutuário

Merece particular destaque o regime instituído pelo RJEP de graduação dos créditos dos empréstimos participativos em caso de insolvência do mutuário. Estes consideram-se créditos subordinados, graduados acima dos créditos dos sócios e de outras pessoas especialmente relacionadas com o devedor (cfr. artigo 7.º do RJEP).

6. Remuneração e reembolso do empréstimo participativo

A remuneração do empréstimo participativo é fixada livremente pelas partes através da sua indexação a uma participação nos resultados do mutuário. Consequentemente, o pagamento da remuneração encontra-se dependente do facto de o mutuário apurar, ou não, resultados. Para estes efeitos, a participação nos resultados pode ser aferida através de qualquer indicador financeiro previsto na demonstração de resultados da empresa, e que reflita a sua situação financeira, nomeadamente o volume de negócios, o resultado operacional ou o resultado líquido.

Essa indexação pode ser total ou parcial. Por outro lado, a participação nos resultados pode consistir numa percentagem fixa ou crescente dos resultados, ou ser proporcional ao peso do valor nominal do empréstimo no capital social do mutuário. A remuneração pode ainda ter uma componente adicional de taxa de juro independente dos resultados do mutuário.

Caso o mutuário não proceda ao pagamento da remuneração devida, o mutuante tem direito ao acionamento das garantias prestadas no âmbito do empréstimo participativo ou, em alternativa, à sua conversão em capital social do mutuário.

Quanto ao reembolso, o mutuário pode, a todo o tempo, proceder ao reembolso do empréstimo participativo com fundos que, nos termos da lei, possam ser distribuídos aos sócios, pelo valor nominal do empréstimo, acrescido da remuneração devida e não paga, e da que se venceria até ao início do trimestre em que ocorra o reembolso, tomando por referência as respetivas demonstrações financeiras que permitam apurar os resultados.

Consequentemente, o pagamento da remuneração do empréstimo, ou o seu reembolso, encontra-se vedado nas circunstâncias em que (a) o capital próprio do mutuário seja ou se tornasse, em virtude do pagamento, inferior à soma do capital social e das reservas, (b) quando os lucros do exercício sejam necessários para cobrir prejuízos transitados ou para formar ou reconstruir reservas impostas por lei ou pelo contrato de sociedade, em conformidade com os artigos 32.º e 33.º do Código das Sociedades Comerciais.

Durante a vigência do contrato, são estabelecidas diversas condições que visam impedir a subcapitalização do mutuário e a frustração do crédito. Assim, naquele período, é igualmente vedado ao mutuário alterar as condições de repartição de lucro fixadas no contrato de sociedade, a atribuição de privilégios às participações sociais existentes, o reembolso suprimentos, prestações acessórias ou suplementares, a amortização de participações sociais e a deliberação de redução do respetivo capital.

7. Conversão do empréstimo em capital social do mutuário

Sem prejuízo de condições mais exigentes fixadas no contrato ou nas condições de emissão de títulos representativos de dívida, o mutuante tem direito à conversão do empréstimo participativo em capital social do mutuário nos casos em que (a) o reembolso não tenha ocorrido na totalidade, decorrido o prazo de reembolso acordado, em virtude da inexistência de fundos distribuíveis, (b) o mutuário não haja pago a remuneração devida durante mais de 12 meses, seguidos ou interpolados, em determinado período fixado no empréstimo participativo, (c) o órgão de administração do mutuário não apresente ao mutuante comprovativo da aprovação de contas e depósito na Conservatória do Registo Comercial decorridos 12 meses sobre o prazo legal para o efeito, (d) ou noutras situações fixadas no contrato. (cfr. artigo 14.º do RJEP).

Verificando-se alguma daquelas situações, o mutuante pode apresentar proposta de conversão do empréstimo participativo em capital social do mutuário, devidamente acompanhado de relatório elaborado por Revisor Oficial de Contas (“ROC”) contendo a avaliação dos créditos a converter. A proposta de conversão deve descrever, designadamente, o conteúdo concreto da operação, a previsão, quando aplicável, da redução do capital social do mutuário e respetiva justificação, o montante do aumento do capital social a subscrever pelo mutuante, mediante a conversão do empréstimo participativo em participações sociais e um projeto de alteração dos estatutos do mutuário. Quando o mutuário seja uma micro ou pequena empresa, os custos incorridos com o relatório elaborado pelo ROC são da responsabilidade do mutuante.

O aumento de capital do mutuário pode ser precedido de redução prévia do capital social do mutuário (cfr. artigo 16.º do RJEP), com o objetivo de cobertura de prejuízos, por iniciativa do mutuante, caso seja de presumir que, em caso de liquidação integral do património do mutuário, não subsistiria qualquer remanescente a distribuir pelos sócios. Neste âmbito, permite-se a redução do capital social para “zero” ou outro montante inferior ao mínimo estabelecido na lei.

Depois da apresentação da proposta de conversão deve ser imediatamente convocada a assembleia geral, que deverá ter lugar no prazo de sessenta dias a contar da data de receção da proposta, com o objetivo de aprovar ou recusar as deliberações nela referidas. É estabelecido, igualmente, um direito de preferência no aumento de capital, a favor dos sócios do mutuário que, caso exerçam esse direito, o aumento deve ser realizado em dinheiro, que é obrigatoriamente aplicado na amortização dos créditos. Na eventualidade do não exercício desse direito, podem os restantes preferentes subscrever a parte de capital que caberia aos demais, na proporção das suas participações.

A participação adquirida pelo mutuante no capital social do mutuário decorrente da conversão do empréstimo participativo é proporcional ao valor do empréstimo não pago, acrescido do valor nominal das remunerações que não hajam sido igualmente pagas.

Finalmente, exige-se que, após o aumento de capital social, o capital próprio do mutuário se cifre em valor superior ao valor do capital social à data da proposta de conversão do crédito em capital. 

Catarina Mira Lança | cml@servulo.com

José Eduardo Oliveira | jpo@servulo.com

 


[1] O Fundo de Capitalização e Resiliência foi criado ao abrigo do Decreto-Lei n.º 63/2021, de 28 de julho, e tem como objeto aportar apoio público temporário para reforçar a solvência de sociedades comerciais que desenvolvam atividade em território nacional e que hajam sido afetadas pelo impacto da pandemia da doença COVID-19 e apoiar o reforço de capital de sociedades comerciais em fase inicial de atividade ou em processo de crescimento e consolidação.

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