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Alterações ao CIRE (Parte I): O Reforço do PER

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 07 Fev 2022

Há muito se antecipava a transposição da Diretiva sobre restruturação e insolvência[1] para o ordenamento jurídico nacional. A salvaguarda, visada pela Diretiva, de empresas e empresários em dificuldades financeiras, nomeadamente através de mecanismos de restruturação preventiva e de processos de insolvência eficazes, ganhou renovada importância no contexto pandémico em que vivemos e que já tanto afetou o tecido empresarial do nosso país. Felizmente, a espera terminou com a publicação da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, que por fim transpôs a Diretiva, introduzindo várias alterações relevantes no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (“CIRE”).

Uma parte significativa dessas alterações respeita ao regime jurídico do processo especial de revitalização (“PER”). As novidades impostas pela transposição da Diretiva incidiram sobre diferentes aspetos do aludido regime, dos quais se destacam os seguintes: 

I. Classificação dos credores

As grandes empresas[2] que pretendam aceder ao PER passam a ter a obrigação de instruir o requerimento inicial com uma proposta de classificação dos credores afetados pelo plano de recuperação em categorias distintas, de acordo com a natureza dos respetivos créditos (garantida, privilegiada, comum ou subordinada). 

Se assim entenderem, as grandes empresas poderão, ainda, classificar os seus credores em função da existência de suficientes interesses comuns, distinguindo, designadamente, os trabalhadores (sem indicar a modalidade do contrato de trabalho), os sócios, as entidades bancárias que tenham financiado a empresa, os fornecedores de bens e prestadores de serviços e os credores públicos, de molde a refletir o universo de credores da empresa.

Estas novas regras – de cujo cumprimento as micro, pequenas e médias empresas estão dispensadas – procuram, segundo o legislador, «assegurar casuisticamente o tratamento mais equitativo dos credores dos quais depende a efetiva restruturação das empresas»[3].

De notar que a incorreção da classificação dos créditos relacionados pela empresa constitui fundamento de impugnação da lista provisória de créditos, cabendo ao juiz decidir, havendo ou não impugnações, sobre a conformidade da referida classificação e determinar a sua alteração, no caso de a mesma não refletir o universo de credores da empresa ou a existência de suficientes interesses comuns entre estes[4]. 

II. Suspensão de medidas de execução

Reforça-se a proteção da empresa contra medidas executivas que os seus credores pudessem querer tomar em face da instauração do PER, com o claro objetivo de evitar obstáculos à almejada viabilização do devedor.

O período standstill, em que vigoram a inibição e a suspensão de medidas de execução contra a empresa, passa a ser de quatro meses, prorrogável por um mês caso se verifique alguma das situações previstas na lei. Anteriormente, o período standstill coincidia com o período de negociações entre a empresa e os credores, o que deixa de suceder ao abrigo da nova lei, considerando que o último permanece de apenas dois meses, prorrogável por um mês[5].

Clarifica-se que o despacho de nomeação do administrador judicial provisório (que determina o início do período standstill) obsta à instauração de quaisquer ações executivas para cobrança de créditos sobre a empresa e suspende quanto à mesma as ações pendentes com idêntica finalidade. Dissipam-se, assim, as dúvidas acerca da inclusão das ações declarativas no âmbito desta norma.

Excecionam-se da inibição e da suspensão acima mencionadas as ações executivas para cobrança de créditos laborais, protegendo-se, desse modo, os direitos dos trabalhadores.

Além da suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pela empresa e dos processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência da empresa (sem que tenha sido proferida sentença declaratória da insolvência), esclarece-se que também se suspendem os processos em que seja requerida a insolvência da empresa após a entrada do PER em tribunal. Além disso, ao longo do período standstill, a empresa fica desvinculada do dever de apresentação à insolvência.

Os credores passam a estar proibidos, durante o período standstill, de recusar cumprir, resolver, antecipar ou alterar unilateralmente contratos executórios essenciais[6] em prejuízo da empresa, relativamente a dívidas constituídas antes do despacho de nomeação do administrador judicial provisório, quando o único fundamento seja a falta de pagamento[7]. A proibição de interrupção de serviços a prestar à empresa deixa, pois, de estar circunscrita aos serviços públicos essenciais, abrangendo agora outros serviços sem os quais a empresa não possa desenvolver a sua atividade. Em contrapartida, quando o preço dos bens ou serviços essenciais à atividade da empresa não seja pago no período standstill, é considerado dívida da massa insolvente, caso a empresa seja declarada insolvente nos dois anos posteriores.

A cláusula contratual que atribua ao pedido de abertura de um PER, à abertura de um PER, ao pedido de prorrogação do período standstill ou ao seu deferimento o valor de uma condição resolutiva do negócio, ou confira à parte contrária um direito de indemnização, de resolução ou de denúncia do contrato, passa a estar ferida de nulidade

III. Conteúdo do plano de recuperação e da sentença de (não) homologação

Densifica-se o conteúdo mínimo do plano de recuperação a apresentar pela empresa, tornando-o mais detalhado e transparente. Salientam-se, entre as novidades, as seguintes informações obrigatórias:

  1. As partes afetadas pelo plano, designadas a título individual e repartidas por classes nos termos gerais ou, se aplicável, por categorias, e os valores dos respetivos créditos ou interesses abrangidos pelo plano;
  2. As partes, designadas e repartidas nos termos do parágrafo anterior, que não são afetadas pelo plano, juntamente com uma descrição das razões pelas quais o plano proposto não as afeta;
  3. As formas de informação e consulta dos representantes dos trabalhadores, a posição dos trabalhadores na empresa e, se for caso disso, as consequências gerais relativamente ao emprego, como despedimentos, redução temporária dos períodos normais de trabalho ou suspensão dos contratos de trabalho;
  4. Qualquer novo financiamento previsto e as razões pelas quais esse novo financiamento é necessário para executar o plano;
  5. Uma exposição de motivos que contenha a descrição das causas[8] e da extensão das dificuldades da empresa e que explique as razões pelas quais há uma perspetiva razoável de o plano de recuperação evitar a insolvência da empresa e garantir a sua viabilidade, incluindo as condições prévias necessárias para o êxito do plano

Por outro lado, o escrutínio judicial do plano de recuperação torna-se mais rigoroso e exigente. Na sentença de homologação ou não homologação do plano de recuperação, o juiz tem necessariamente de aferir:

  1. Se o plano de recuperação foi aprovado (i.e., se as maiorias previstas na lei foram respeitadas);
  2. Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, os credores inseridos na mesma categoria são tratados de forma igual e proporcional aos seus créditos;
  3. Se, no caso de classificação dos credores em categorias distintas, as categorias votantes discordantes de credores afetados recebem um tratamento pelo menos tão favorável como o de qualquer outra categoria do mesmo grau e mais favorável do que o de qualquer categoria de grau inferior;
  4. Que nenhuma categoria de credores pode, no âmbito do plano de recuperação, receber nem conservar mais do que o montante correspondente à totalidade dos seus créditos;
  5. Se a situação dos credores ao abrigo do plano é mais favorável do que seria num cenário de liquidação da empresa, caso existam pedidos de não homologação com este fundamento;
  6. Se aplicável, que o novo financiamento necessário para executar o plano de reestruturação não prejudica injustamente os interesses dos credores;
  7. Se o plano de recuperação apresenta perspetivas razoáveis de evitar a insolvência da empresa ou de garantir a viabilidade da mesma.

No âmbito da elaboração da decisão de homologar ou não o plano de recuperação, o juiz passa, ainda, a ter a prerrogativa de determinar a avaliação da empresa por um perito, se algum credor pedir a não homologação com fundamento (a) na alegação de que a situação dos credores ao abrigo do plano é menos favorável do que seria num cenário de liquidação da empresa ou (b) no desrespeito das regras de aprovação do plano previstas para os casos de inexistência de categorias de credores garantidos e de empate. 

IV. Maiorias de aprovação do plano de recuperação

Uma das grandes novidades no regime do PER reside nas maiorias de aprovação do plano de recuperação. Passamos a dispor de três sistemas de formação das maiorias de aprovação:

  • O primeiro, aplicável aos casos em que haja classificação dos credores em categorias distintas (portanto, às grandes empresas);
  • O segundo, aplicável aos demais casos (ou seja, às micro, pequenas e médias empresas);
  • O terceiro, aplicável em quaisquer casos (seja qual for a dimensão da empresa).

No primeiro sistema, define-se a regra do voto favorável, em cada uma das categorias de credores, de mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos (não se considerando como tal as abstenções), obtendo dessa forma:

  1. O voto favorável de todas as categorias formadas;
  2. O voto favorável da maioria das categorias formadas, desde que pelo menos uma dessas categorias seja de credores garantidos;
  3. Caso não existam categorias de credores garantidos, o voto favorável de uma maioria das categorias formadas, desde que pelo menos uma das categorias seja de credores não subordinados;
  4. Em caso de empate, o voto favorável de pelo menos uma categoria de credores não subordinados.

Este sistema permite, pois, aquilo que na Diretiva sobre restruturação e insolvência se designa por restruturação forçada da dívida contra categorias de credores ou, utilizando o termo inglês, cross-class cram-down.

No segundo sistema, subsiste a regra de aprovação do plano que, sendo votado por credores cujos créditos representem pelo menos 1/3 dos créditos relacionados com direito de voto (não se considerando as abstenções), obtenha o voto favorável de (i) mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos e (ii) mais de 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto.

Finalmente, no terceiro sistema, tem-se por aprovado o plano que recolha cumulativamente (sem considerar as abstenções) o voto favorável (i) de credores cujos créditos representem mais de 50% da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto e (ii) de mais de 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto. 

V. Direito de oposição da empresa à insolvência

Nos casos em que não tenha sido aprovado plano de recuperação e o administrador judicial provisório emita parecer onde conclua pela insolvência da empresa, esta passa a dispor do prazo de cinco dias para se opor por mero requerimento[9]. Se a empresa deduzir oposição, o juiz determina o encerramento e arquivamento do PER, com a extinção de todos os seus efeitos. Se, pelo contrário, a empresa não se opuser, a insolvência é declarada pelo juiz no prazo de três dias úteis, sendo o PER apenso ao processo de insolvência. 

VI. Incentivos ao financiamento

O sucesso de um plano de recuperação depende, em muitos casos, da concessão de assistência financeira à empresa submetida ao PER. Como medida protetora desse financiamento, assegura-se que os credores que financiem a atividade da empresa[10], no decurso do PER (novo financiamento) ou em execução do plano de recuperação (financiamento intercalar), gozam de um crédito sobre a massa insolvente, até um valor correspondente a 25% do passivo não subordinado da empresa à data da declaração de insolvência da empresa, caso esta venha a ocorrer no prazo de dois anos a contar do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano. 

Os créditos decorrentes de financiamento continuam a gozar de privilégio creditório mobiliário geral, graduado antes do privilégio creditório mobiliário geral concedido aos trabalhadores, mas na parte que excede os 25% referidos no parágrafo anterior. Estende-se, agora, esse privilégio aos créditos resultantes de financiamento intercalar concedido por credores, sócios, acionistas e quaisquer outras pessoas especialmente relacionadas com a empresa. 

Mais se proíbe a impugnação pauliana dos atos de financiamento, bem como a declaração da respetiva nulidade, anulabilidade ou insuscetibilidade de execução. Também se salvaguardam os financiadores de incorrer em responsabilidade civil, administrativa ou penal, com fundamento na prejudicialidade dos financiamentos para o conjunto dos credores, salvo nos casos expressamente previstos na lei.

A globalidade destas alterações traduz uma aposta renovada no PER[11] e na sua capacidade de viabilizar empresas com dificuldades financeiras. O aumento da proteção da empresa contra medidas executivas, a obrigação de apresentação de um plano de recuperação mais completo e fundamentado, a flexibilização das maiorias de aprovação do plano e os benefícios atribuídos aos financiadores da empresa resultam, a nosso ver, num PER reforçado, com maior probabilidade de êxito, não só na ótica do devedor, mas também na perspetiva dos credores. 

A Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor – 11 de abril de 2022 –, mas as alterações ao regime jurídico do PER, com exceção das referentes à conclusão do PER sem aprovação do plano de recuperação e aos financiamentos, apenas se aplicam aos processos instaurados após a referida data.

Alexandra Valpaços | ava@servulo.com



[1] Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas).

[2] Entende-se por «grande empresa» a que emprega 250 ou mais pessoas e cujo volume de negócios anual excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual excede 43 milhões de euros (cfr. Artigo 2.º, a contrario, do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro).

[3] Cfr. Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 115/XIV/3.ª (pág. 5), que deu origem à Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.

[4] Atendendo ao caráter indeterminado do conceito de «suficientes interesses comuns», incumbirá aos tribunais identificar as situações em que os interesses comuns dos credores são suficientes para a respetiva classificação conjunta.

[5] A redação da norma prevista no anterior artigo 17.º-D, n.º 5, do CIRE manteve-se (propositadamente?) intocada, tendo apenas sido renumerada como n.º 7 do mesmo artigo.

[6] São «contratos executórios essenciais» os contratos de execução continuada necessários à continuação do exercício corrente da atividade da empresa, incluindo quaisquer contratos de fornecimento de bens ou serviços cuja suspensão levaria à paralisação da atividade da empresa.

[7] Embora a norma não proíba expressamente o credor da empresa de denunciar (por definição, sem fundamento) o contrato executório essencial, uma interpretação a maiori ad minus conduz-nos à conclusão de que, ao proibir a resolução por falta de pagamento do preço, o legislador também quis vedar a cessação unilateral ad nutum do contrato.

[8] A descrição das causas das dificuldades da empresa já era, e continua a ser, um dos elementos que devem instruir o requerimento inicial do PER (cfr. artigo 24.º, n.º 1, alínea c), aplicável ex vi artigo 17.º-C, n.º 3, alínea b), ambos do CIRE).

[9] O legislador veio, desta forma, ultrapassar a interpretação da norma anterior segundo a qual o parecer do administrador judicial provisório favorável à insolvência da empresa equivalia à apresentação desta à insolvência. Recorde-se que o Tribunal Constitucional já havia declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma interpretada naquele sentido, no Acórdão n.º 675/2018, de 23 de janeiro.

[10] Financiamento entendido como disponibilização de capital.

[11] Em paralelo com o PER, o processo especial para acordo de pagamento (“PEAP”), que corresponde ao PER das pessoas singulares, também foi objeto de alterações, das quais se destaca o direito de oposição do devedor ao parecer do administrador judicial provisório que conclua pela sua insolvência ou, em alternativa, o direito de apresentar plano de pagamentos ou de requerer a exoneração do passivo restante (cfr. artigo 222.º-G, n.º 5, do CIRE).

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