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Novo pacote europeu de AML/CFT

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 19 Out 2021

Foi recentemente tornada pública pela Comissão Europeia uma importantíssima proposta de reforma do regime europeu de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo (o “BCFT”). Na apresentação deste novo pacote legislativo, qualificado pela própria Comissão como ambicioso, foram identificados dois objetivos centrais que se traduzem na promoção da identificação das operações e atividades suspeitas e na eliminação de falhas existentes na malha preventiva do BCFT a nível europeu que pudessem ser utilizadas para a concretização de tais práticas.

Não obstante ser este novo pacote integrado por quatro propostas de atos legislativos de diferente natureza e escopo, podem identificar-se traços caracterizadores comuns que são representativos da evolução europeia em matéria de combate ao BCFT.

Em primeiro lugar, nas quatro propostas em análise, que serão ainda objeto de discussão no Parlamento Europeu e no Conselho, verifica-se uma clara intenção promover um reforço do papel das instituições da União Europeia na prevenção do BCFT, sendo correspondentemente diminuídas as competências dos Estados-Membros. Tal reforço assenta essencialmente em dois pilares: i) no estabelecimento de regras comuns diretamente aplicáveis aos destinatários dos deveres; e ii) na criação de uma autoridade de supervisão europeia.

Em segundo lugar, a proposta da Comissão pretende incorporar na estrutura preventiva do BCFT soluções específicas destinadas a combater novas ameaças de integração de montantes de origem ilícita no sistema financeiro através de meios ligados à transversal inovação tecnológica. Neste âmbito assumem especial relevo as fragilidades para a prevenção que podem resultar das inescapáveis características dos ativos virtuais e da progressiva desmaterialização e integração tecnológica do mercado europeu.

Por fim, denota ainda a proposta em análise uma assinalável preocupação na construção de um sistema europeu preventivo do BCFT que se demonstre verdadeiramente eficaz, sendo considerado barómetro fundamental da eficácia a capacidade deste sistema permitir identificar operações com caráter suspeito por estarem relacionadas com práticas ilícitas. Pois, como nota a Comissão, a integração de vantagens provenientes de ilícitos continua a representar um premente problema, sendo estimado pela Europol que cerca de 1% do produto interno bruto da União Europeia se relacione com atividades financeiras suspeitas.

No que se refere especificamente a cada um dos atos legislativos propostos, destacam-se as seguintes características: 

i. Regulamento que estabelece a nova EU AML Authority (AMLA)

A criação da AMLA assume-se como um elemento capital na concretização do objetivo central de promoção da eficiência na prevenção do BCFT, pois, na perspetivada Comissão, uma estrutura supranacional com competências específicas neste âmbito permitirá reduzir a discrepâncias existentes no exercício de supervisão por parte das autoridades nacionais. Para concretização deste desiderato de promoção de uma cultura unitária de supervisão à AMLA serão atribuídas competências numa dupla vertente: i) supervisão direta de determinadas entidades do setor financeiro com atividade em diferentes Estados-Membros que apresentem um elevado risco de BCFT; e ii) estabelecimento de padrões comuns de supervisão a atender pelas restantes autoridades de supervisão do sistema financeiro e do setor não financeiro e que devem ainda ser considerados pelas diferentes Unidades de Informação Financeira.

No que se refere às entidades que passarão a ser diretamente supervisionadas pela AMLA estas serão aquelas entidades do setor financeiro que desenvolvem atividades em vários Estados-Membros (sete ou dez consoante a natureza da entidade) e que apresentem um maior risco em matéria de BCFT em alguns desses Estados-Membros. Para efeitos, desta avaliação de risco, serão estabelecidos padrões comuns de avaliação. Será ainda previsto que a AMLA possa solicitar à Comissão Europeia que uma concreta entidade financeira seja sujeita à sua supervisão independentemente da verificação dos critérios referidos. A AMLA será estabelecida a 1 de janeiro de 2023, mas espera-se que apenas em 2026 inicie a supervisão direta das entidades financeiras de maior risco.

Em suma, dependendo a competência da AMLA não só da atividade transfronteiriça, mas também de uma avaliação de risco a concretizar no futuro não são ainda antecipáveis as entidades que passarão a estar diretamente sob o seu escrutínio.  

ii. Novo Regulamento que estabelece regras de prevenção da utilização do sistema financeiro para práticas BCFT

A aprovação desta proposta determinará que na União Europeia um vasto conjunto de entidades obrigadas passe a estar diretamente sujeita a um mesmo conjunto de regras preventivas do BCFT, pois deixar-se-á de verificar uma intervenção conformadora das regras por parte de cada um dos Estados-Membros através do respetivo instrumento de transposição. Este passo, por tal razão, é apresentado pela Comissão Europeia como um Single EU Rulebook. No entanto – como inevitável seria – a harmonização não será total na medida em que poderão sempre os Estados-Membros alargar o elenco de entidades obrigadas (v. g. o elenco de entidades obrigadas da lei nacional não é inteiramente coincidente com aquele que consta do projeto), bem como poderão os Estados-Membros isentar certas atividades financeiras do cumprimento dos deveres preventivos mediante a verificação dos requisitos previstos no artigo 5.º do projeto em análise.

No que se refere ao conteúdo regulatório deste projeto podem, por comparação às regras nacionais vigentes, destacar-se as seguintes soluções: i) o limiar que desperta o dever de identificação e diligência em transações ocasionais é genericamente definido em EUR 10.000,00 e para prestadores de serviços de jogo em EUR 2.000,00; ii) a obtenção de informação sobre a origem e o destino dos fundos movimentados passa a impor-se sempre e não apenas quando o perfil de risco do cliente ou as características da operação o justifiquem; iii) são previstas regras expressas aplicáveis aos casos em que determinadas pessoas deixem de ser PEPs; iv) verifica-se a densificação e a diferenciação das regras referentes à execução dos deveres de identificação por terceiros e ao recurso à subcontratação; v) estabelecem-se critérios que devem ser atendidos para aferir se é exercido controlo sobre uma entidade por outros meios que não a detenção de participações sociais; e vi) incluir-se nesta sede previsão expressa da não imposição do dever de comunicação de operações suspeitas (ainda que tal resultasse já de regras especificas) para advogados, notários, auditores e outros consultores na medida em que tal isenção diga respeito às informações por eles recebidas de um dos seus clientes ou obtidas sobre um dos seus clientes no decurso da apreciação da situação jurídica do cliente ou da defesa ou representação desse cliente em processos judiciais.

Note-se ainda que o projeto em análise, apesar de propender para um elevado grau de densificação, remete à AMLA a incumbência de propor normas técnicos em matérias fundamentais como i) critérios para determinar transações relacionadas entre si para efeitos da superação do limiar relevante das transações ocasionais; ii) dever de identificação e diligências (v.g. informações a recolher e fontes fiáveis de informação a que se pode recorrer; e iii) o formato a utilizar para a comunicação de transações suspeitas.

Por fim, refira-se que algumas soluções normativas apresentadas como novidade não o são no nosso contexto nacional por se encontrarem já incorporadas na legislação nacional. Entre estas contam-se, por exemplo, o alargamento de obrigações a todas as plataformas gestoras de crowdfunding e as medidas tendentes à limitação da utilização de instrumentos ao portador.

iii. Diretiva relativa aos mecanismos a criar pelos Estados-Membros para prevenir a utilização do sistema financeiro para efeitos de BCFT 

A proposta de Diretiva viu o seu escopo em grande medida cerceado pois a generalidade dos deveres preventivos dirigidos às entidades obrigadas passará a estar prevista num regulamento europeu. Por conseguinte, este projeto contém, no essencial, normas que requererão atuação direta por parte dos Estados-Membros ou de autoridades públicas nacionais. E isto é assim porque esta Diretiva será integrada, em geral, por normas referentes à necessidade de conclusão de avaliações de risco BCFT, ao Registo Central do Beneficiário Efetivo (o “RCBE”), às Unidades de Informação Financeira, às atribuições e competências das autoridades de supervisão e à cooperação entre Estados-Membros.

No plano do RCBE resultará desta Diretiva a necessidade de operacionalização do acesso direto por parte das entidades obrigadas e da interligação de todos os registos centrais europeus através da Plataforma Central Europeia criada pela Diretiva (UE) 2017/1132 relativa a determinados aspetos do direito das sociedades. Ainda neste âmbito determina-se que as entidades devem passar a dispor de um prazo máximo de 14 dias para comunicar ao RCBE discrepâncias detetadas.

iv. Proposta de revisão do Regulamento (UE) 2015/847 relativo às informações que acompanham as transferências de fundos

O reconhecimento por parte da Comissão Europeia do abstrato risco elevado de BCFT inerente aos ativos virtuais e a consequente adoção de medidas para combater a ocorrência de tais práticas neste cada vez mais importante mercado fica bem patente nesta proposta. Em causa, no essencial, está o alargamento do âmbito de aplicação do Regulamento (UE) 2015/847 de forma a abranger os ativos virtuais, na medida em que este presentemente limita o seu escopo às transferências de fundos.

Em suma, pretende a Comissão pôr termo ao risco de anonimato existente nas operações relativas a ativos virtuais, pelo que os prestadores de serviços em ativos virtuais ficarão, depois da alteração ao Regulamento em epígrafe, vinculados a assegurar que as transferências de ativos virtuais são acompanhadas da identificação e número da conta do iniciante e do beneficiário.  

Esta proposta – que complementa a Proposta de Regulamento Europeu relativo aos mercados de criptoativos – assume-se como uma peça adicional no estabelecimento de um regime europeu sólido em matéria de ativos virtuais.

José Guilherme Gomes | jgg@servulo.com

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