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O Direito da concorrência vs Regulamento de Agentes da FIFA: quem sairá vencedor?

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 01 Ago 2023

“Game-changing regulations are shaking up the world of football agents. With FIFA’s recently approved Football Agent Regulations set to take full effect on 1 October 2023, FIFA’s interests and those of the agents seem to be at odds. With first court decisions on the table, may antitrust assume the role of a referee?”[1] 

I. Contextualização

O futebol é, na sua essência, um jogo competitivo disputado dentro de quatro linhas. Não obstante,  o Regulamento de Agentes de Futebol da FIFA (“FFAR”), aprovado no dia 16 de dezembro de 2022, e aplicável a partir de 1 de Outubro de 2023, tem sido alvo dos holofotes do mundo desportivo.

O FFAR materializa uma mudança de paradigma nos aspetos essenciais da atividade dos agentes desportivos. As principais metas do FFAR são, entre outras, proteger a estabilidade contratual entre jogadores e clubes, promover a transparência e pugnar pela representação justa e observância dos mais altos padrões de conduta ética durante todo o processo de transferências. Como já referido em anteriores publicações Sérvulo [(i) “Guia para o novo Regulamento da FIFA sobre Agentes de Futebol - Parte I: Acesso à atividade” ; (ii) “Guia para o novo Regulamento da FIFA sobre Agentes de Futebol - Parte II: O exercício da atividade de agente ; (iii) “Guia para o novo Regulamento da FIFA sobre Agentes de Futebol - Parte III: O exame”], alguns dos elementos-chave do regulamento são: 

  • A exigência de licença para os agentes: a licença só é concedida mediante pedido através da Plataforma da FIFA e após aprovação no exame de acesso da FIFA, ao que acresce o pagamento de uma taxa anual de licença (600 dólares em 2023).
  • A proibição de dupla representação: o FFAR introduz a proibição expressa de os agentes de futebol representarem mais do que uma parte numa transação. Existe, contudo, uma exceção a esta regra: o agente de futebol poderá representar simultaneamente o jogador/treinador e o seu clube de destino, mediante acordo expresso, por escrito, de ambas as partes.
  • Limites máximos das comissões: (i) a comissão do agente que atua em nome do clube comprador ou do jogador tem o limite máximo de 3 ou 5% da remuneração anual do jogador; (ii) em caso de representação múltipla permitida, a comissão do agente tem o limite máximo de 6 ou 10% da remuneração anual do jogador; (iii) a comissão do agente que atua em nome do clube vendedor está limitada ao máximo de 10% da remuneração total da transferência.

II. Litígios

O FFAR reclama inúmeras vantagens para os intervenientes do mundo futebolístico, mas tem sido, simultaneamente, alvo de críticas de diversos setores.

A regulação da atividade dos agentes de futebol não é uma novidade na jurisprudência europeia[2], sendo que, recentemente, vários agentes e associações de agentes intentaram ações judiciais contra a FIFA nos tribunais de diferentes Estados-Membros[3], dos quais se destacam:

(i) o processo de arbitragem que correu termos no Court of Arbitration for Sport (“CAS”) com o n.º 2023/O/9370[4];

(ii) o procedimento cautelar LG Dortmund, 24.5.2023, 8 O 1/23 (Kart) que correu termos no Tribunal Regional de Dortmund; e,

(iii) o processo no Tribunal Regional de Mainz, que culminou, por ora, num reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), encontrando-se a aguardar a pronúncia desse tribunal.

Em todas estas ações foi contestada a legalidade de determinadas disposições do FFAR. 

a) O Processo CAS 2023/O/9370

No processo de arbitragem CAS 2023/O/9370, a Professional Football Agents Association (“PROFAA”), requereu que o CAS declarasse que certos artigos do FFAR violavam normas de direito europeu, designadamente, normas do direito da concorrência, proteção de dados, entre outras. O CAS é o órgão mundial supremo para dirimir litígios desportivos e é plenamente reconhecido pela FIFA nos termos do artigo 56. º dos seus Estatutos.

Neste litígio, a PROFAA invocou, entre outras disposições, uma violação dos artigos 101.º e 102.º do Tratado do Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).

A associação argumentou que os limites máximos das comissões constituem uma violação do artigo 101. º do TFUE, na medida em que os mesmos impedem os agentes de concorrerem substancialmente em termos de preço, eliminando qualquer margem para diferenciação a esse nível, tendo, ademais, um efeito dissuasor sobre potenciais novos agentes ao criar obstáculos significativos à entrada no mercado.

Adicionalmente, a PROFAA argumentou que a imposição de um limite máximo para as comissões não prossegue um objetivo legítimo reconhecido pelo TJUE, como a proteção da integridade do desporto, mas, pelo contrário, visa proteger os interesses económicos da FIFA.

Quanto ao artigo 102.º do TFUE, a PROFAA invocou, em síntese, que a FIFA abusa da sua posição dominante, que deste modo faz estender também para o mercado dos serviços de agentes de futebol, bem como que os limites máximos das comissões[5] equivalem não só a uma fixação de preços, mas também a um preço de compra ou uma condição de transação injustos. É destacado, por exemplo, o facto de a fixação de um limite máximo para as comissões resultar numa quebra de rendimento para a maioria dos agentes de futebol, designadamente os que operam nas ligas de futebol menos competitivas.

Nesse conspecto, a circunstância de uma fatia significativa do universo global de agentes representar jogadores que jogam em ligas inferiores e que têm um valor de mercado relativamente baixo é utilizada para ilustrar a conclusão de que a imposição de limites às comissões destes agentes, elas próprias já baseadas em salários baixos, poderá ter como consequência indesejada a exclusão destes agentes do mercado e a obtenção de maior quota de mercado por parte da pequena elite de “grandes” agentes[6]. A estas dificuldades soma-se, por outro lado, o pagamento da quota anual de $600 que passa a ser devida à FIFA por todos os agentes.

Ademais, é invocado que os requisitos de licenciamento e elegibilidade, como a aprovação num exame de acesso à profissão num número limitado de línguas, pode figurar como uma violação à legislação europeia, não só como uma violação à liberdade de estabelecimento e à liberdade de prestação de serviços, mas também como uma violação à proibição da discriminação, além de que constituem uma restrição excessiva da independência e da autonomia comercial dos agentes, uma vez que os regulamentos têm uma cobertura total do mercado, não existindo qualquer forma alternativa de um agente negociar livremente os seus contratos ou comissões.

No passado dia 24 de julho de 2023, o CAS julgou improcedente a ação movida pela PROFAA e procedentes os argumentos apresentados pela FIFA em defesa da legalidade do seu regulamento. A decisão proferida é passível de impugnação para o Supremo Tribunal Federal Suíço, não produzindo, em qualquer caso, eficácia vinculativa para os diversos tribunais nacionais que foram e poderão ainda vir a ser chamados a pronunciar-se sobre o FFAR – nem, por maioria de razão, para o TJUE (que será, previsivelmente, a última instância a pronunciar-se, em termos finais, sobre a legalidade do regulamento). 

b) O processo cautelar LG Dortmund, 24.5.2023, 8 O 1/23 (Kart) 

No Tribunal Regional de Dortmund, os argumentos invocados perante o tribunal foram semelhantes aos argumentos invocados no CAS.

Diferentemente, o Tribunal Regional de Dortmund decidiu de forma desfavorável em relação à FIFA. O Tribunal proibiu a FIFA e a DFB (“Deutscher Fußball-Bund” – Federação de Futebol Alemã) de aplicar determinadas disposições do FFAR que violam o direito da concorrência, sob pena de pagamento de coimas que podem atingir os €250.000 por cada violação.

Deve salientar-se que a decisão do Tribunal Regional de Dortmund – ainda que proferida no âmbito de um procedimento cautelar e não em sede de ação principal, e ainda que anterior à decisão do CAS, que decidiu de modo favorável à FIFA – constitui um sinal favorável às pretensões dos agentes que contestam a regularidade do FFAR, podendo esta decisão abrir caminho para outras decisões no mesmo sentido por parte de tribunais de outros Estados-membros[7].

A decisão foi já objeto de recurso para a instância superior, o Higher Regional Court of Dusseldorf, que irá apreciar a questão nos próximos meses. Se favorável, a decisão tornará o FFAR inaplicável na Alemanha. 

III. Qual o impacto para os agentes em Portugal?

As ações nos tribunais nacionais poderão afigurar-se como um entrave à aplicação do FFAR a nível doméstico e especula-se sobre a propositura de ações similares nos tribunais portugueses. 

Não obstante a controvérsia e as falhas que os agentes desportivos têm vindo a apontar ao FFAR, é aconselhável que todos os agentes desportivos revejam os seus contratos de agência com os jogadores, de forma a assegurarem a sua conformidade com o regulamento antes de 1 de outubro de 2023[8].

Miguel Máximo dos Santos | mxs@servulo.com



[1] “FIFA’s Football Agent Regulations – Next round of antitrust disputes”, Paul Droessler, 26.5.2023, disponível em: https://antitrustpolitics.com/2023/05/26/fifas-football-agent-regulations-next-round-of-antitrust-disputes/

[2] Entre outros, veja-se o Acórdão do Tribunal de Primeira Instância (Quarta Secção) de 26.1.2005, Piau/Comissão, onde já se discutia a conformidade do regulamento de agentes desportivos então vigente com o direito europeu da concorrência [Acórdão do Tribunal de Primeira Instância (Quarta Secção) de 26.1.2005, Piau/Comissão, n. º proc. T-193/02, EU:T:2005:22].

[3] Foram intentadas ações nos Países Baixos, Espanha, Reino Unido, Suíça e República Checa, entre outros.

[4] CAS 2023/O/9370, Professional Football Agents Association (PROFAA) v. FIFA, 24.7.2023.

[5] Artigo 15. º do FFAR.

[6] “Swiss soccer player agents file challenge to FIFA rules”, AP News, 21.3.2023, disponível em: https://apnews.com/article/soccer-fifa-player-agents-legal-challenge-2a9811e049292a385b7b29eb616828c2

[7] “FIFA’s Football Agents Regulation Violates Competition Law”, Kluwer Competition Law Blog, Tim Lichtenberg (University of Cologne), 20.7.2023, disponível em: https://competitionlawblog.kluwercompetitionlaw.com/2023/07/20/fifas-football-agents-regulation-violates-competition-law/

[8] “Will the FIFA Football Agent Regulations reform the role of the football agent for the better?”, Lexology, 1.3.2023, disponível em: https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=c0dfd26d-02b2-4e73-8f1a-39f274443a01

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