Atenção, o seu browser está desactualizado.
Para ter uma boa experiência de navegação recomendamos que utilize uma versão actualizada do Chrome, Firefox, Safari, Opera ou Internet Explorer.

Impacto da COVID-19 nos contratos financeiros

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 26 Mar 2020

A propagação da doença COVID-19 e a emergência de saúde pública daí decorrente têm ocupado naturalmente as preocupações de todos, nas últimas semanas. As principais inquietações são provocadas, obviamente, pela saúde e a segurança dos cidadãos, e a elas deve ser dada prioridade, nas respostas materiais, sociais e legislativas.

Aos juristas cabe, obviamente, colaborar nesse esforço, mas também antecipar as consequências que um fenómeno desta natureza pode ter, a médio e longo prazo. É certo que a crise de saúde pública que agora vivemos terá um impacto na economia portuguesa e mundial, mas os atores jurídicos – advogados, juízes, árbitros, entre muitos outros -, podem ter um papel relevante na diminuição da litigiosidade daqui decorrente, e na procura de soluções razoáveis e justas.

No domínio dos contratos financeiros, as consequências da crise de saúde pública que agora vivemos serão heterogéneas e os seus contornos não são totalmente antecipáveis, no presente momento. O impacto nos contratos financeiros dependerá em grande parte, obviamente, da dimensão da contração económica resultante da COVID-19, mas também se fará sentir de forma diferenciada, consoante estejamos perante contratos celebrados com consumidores ou com empresas, ou perante relações entre profissionais do setor financeiro.

É de esperar que algumas instituições de crédito adotem medidas de mitigação do impacto da crise do COVID-19 a determinadas categorias de contratos, concedendo por exemplo moratórias nos créditos a particulares ou nos créditos comerciais. Não é de afastar, até, que estas medidas individualmente tomadas sejam dobradas por regimes excecionais de âmbito geral, aprovados pelo legislador, à imagem do que sucedeu em resposta à Crise Financeira de 2007.

Sendo imprevisíveis, pelos menos em parte, os contornos do impacto da COVID-19 no setor financeiro, também são impossíveis de identificar todos os pontos críticos, em matéria jurídica, no atual momento.

Podem, no entanto, considerar-se algumas linhas gerais, que serão úteis numa das tarefas que todas as instituições financeiras estarão atualmente a realizar: a de analisar os principais contratos ou categorias de contratos financeiros, equacionando cenários de evolução da crise, e tentando antecipar o respetivo impacto, para determinar uma estratégia em relação a cada um deles.

A primeira linha de força refere-se à reduzida relevância que terá o instituto da impossibilidade, no domínio dos contratos financeiros. Por um lado, a doutrina e a jurisprudência portuguesas adotam consensualmente um conceito absoluto de impossibilidade, que não dá cobertura a dificuldades inesperadas de prestar ou de sacrifícios económicos desproporcionais. Por outro, nos contratos financeiros as prestações dominantes são pecuniárias, ou de entrega de instrumentos financeiros, sendo dificilmente configurável uma impossibilidade objetiva, absoluta e permanente de fornecimento do género devido.

Não quer isto dizer, porém, que as dificuldades de acesso aos mercados financeiros sejam irrelevantes no plano contratual. Estas dificuldades são inesperadas, em relação ao programa contratual estabelecido pelas partes, e podem ser relevantes, por exemplo, para considerar que o atraso no cumprimento de uma determinada prestação não é imputável ao devedor (excluindo por isso a mora do devedor e as suas consequências), ou até para considerar que há uma verdadeira impossibilidade temporária de prestar.

Neste contexto, é também natural que o instituto da alteração das circunstâncias seja convocado pelos atores jurídicos. Convém relembrar, no entanto, que o instituto tem sido utilizado com parcimónia pelos tribunais portugueses, que resistiram à tentação de o utilizar como panaceia nos litígios decorrentes da Crise Financeira de 2007.

Muitas destas questões terão sido antecipadas pelas partes no texto do contrato, e por essa razão uma tarefa essencial, que pode ser desde já levada a cabo, é a do mapeamento das cláusulas que regulam alterações materiais relevantes (ex. a cláusula sobre material adverse changes).

Outra tarefa urgente é a de mapear as alternativas contratualmente previstas de prevenção de litígios, sendo especialmente relevantes as que estabelecem deveres de renegociar ou, pelo menos, de iniciar de boa-fé negociações para uma eventual alteração contratual.

Um último ponto deve ser destacado, nestas considerações sintéticas a propósito do impacto da COVID-19 nos contratos financeiros. Caso a perturbação no programa contratual seja avolumada pelo decurso da crise, e se torne inevitável um litígio mais adiante, convém relembrar que o olhar dos juízes e dos árbitros será inevitavelmente influenciado pela conduta das partes nestes primeiros momentos de incerteza, que agora vivemos. Serão seguramente censuradas, de forma direta ou indireta, as condutas precipitadas, a rigidez no exercício de direitos, o desinteresse em procurar soluções criativas de renegociação ou a falta de transparência na troca de informações.

Torna-se por isso essencial o estabelecimento pelas instituições financeiras de uma linha de comunicação com as principais contrapartes, de forma a garantir um fluxo de informação adequado e um canal onde se manifeste a boa-fé e a lealdade nos esforços de negociação. Estes poderão ser premiados com uma renegociação benéfica para ambas as partes mas, mesmo em caso de litígio, não deixarão de ser valorizados no futuro.

Francisco Mendes Correia | fco@servulo.com