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O Novo Regime Jurídico das Contraordenações Económicas: Aspetos de cariz sancionatório

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 20 Abr 2021

No passado dia 29 de janeiro, foi publicado o Decreto-Lei n.º 9/2021, que aprova o Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (“RJCE”). O diploma entra em vigor no dia 28 de julho de 2021.

Este novo regime procedeu à criação e autonomização da figura das “contraordenações económicas”, definindo-as como as infrações relativas a todos os factos que consubstanciem a violação de disposições legais e regulamentares, relativas ao acesso ou ao exercício, por qualquer pessoa singular ou coletiva, de atividades económicas nos setores alimentar e não alimentar e cuja sanção prevista seja uma coima.

Conforme antevisto nos textos anteriormente publicados[1], e referido a título preambular, a criação do aludido regime surge da necessidade de eliminar a disparidade de regimes sancionatórios previstos em centenas de diplomas que regulam a atividade económica.

Assim, por um lado, a título exemplificativo, ficam a coberto deste novo regime as matérias relativas a práticas individuais restritivas do comércio, leilões e prestamistas, produtos alimentares, diamantes, ourivesarias e contrastarias, jogo, setor agrícola, tabaco, desporto, saúde, farmacêutica, dispositivos médicos, veterinária, direitos de autor e direitos conexos...

Por outro lado, clarifica-se expressamente que ficam excluídas do seu âmbito substantivo de aplicação as contraordenações de natureza ambiental, financeira, fiscal e aduaneira, das comunicações, da concorrência e da segurança social.

Uma vez que se trata de contraordenações, o regime de aplicação subsidiária é o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que criou o Regime Geral das Contraordenações (“RGCO”), o qual, por sua vez, remete subsidiariamente para o Código Penal e para o Código de Processo Penal.  Coloca-se agora a questão de saber o quão coerente e eficaz poderá ser a conciliação deste novo regime com o enquadramento sancionatório em vigor.

Feita esta introdução, sublinhamos que o objetivo desta nossa publicação é o de destacar alguns dos aspetos mais significativos deste novo regime. Ora vejamos. 

  • Aspetos particulares do novo RJCE 

Da maior relevância é a ampliação da responsabilidade de entidades coletivas pela consagração de um modelo de imputação que é suscetível de desencadear a sua responsabilização pelas infrações cometidas em atos praticados, em seu nome ou por sua conta, pelos titulares dos órgãos sociais, pelos titulares dos cargos de direção e chefia e pelos seus trabalhadores, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas e, bem assim, por mandatários e representantes, em atos praticados em seu nome ou por sua conta. Alargando-se o círculo dos agentes do facto de ligação (a prática da contraordenação), amplia-se a responsabilidade das entidades coletivas pela mesma contraordenação.

É criado o regime da reincidência, estabelecendo-se que é punido como reincidente quem cometer uma contraordenação económica depois de ter sido condenado, por decisão definitiva ou sentença transitada em julgado, por outra contraordenação do mesmo tipo. Trata-se de uma inovação, de cuja utilidade não duvidamos, mas temos sérias dúvidas sobre a constitucionalidade destas normas por se tratar de matéria de reserva da competência da Assembleia da República.

Destacamos também a consagração de um regime especial de prescrição, diverso do RGCO, com várias causas de interrupção e de suspensão. 

  • Sanções

A par de outros regimes sancionatórios, este classifica as contraordenações económicas como “leves”, “graves” e “muito graves”.

As coimas são determinadas em função da natureza singular ou coletiva do agente e, no caso das pessoas coletivas, em função da dimensão da “empresa” (que poderá ser uma “microempresa”, “pequena empresa”, “média empresa” ou “grande empresa”).

Os montantes das coimas fixam-se entre €150 a €7.500 (coimas mínima e máxima aplicáveis a pessoa singular) e €250 a € 90.000 (coimas mínima e máxima aplicáveis a pessoa coletiva).

É estabelecida a possibilidade de atenuação especial da coima, que conduz à redução para metade dos limites mínimo e máximo aplicáveis e institui-se a possibilidade de aplicação de uma decisão de admoestação em substituição de coima para as contraordenações leves.

Outra novidade prende-se com a adoção de um regime parcial de “clemência”, que consiste na redução em 20% do montante mínimo da coima, independentemente da classificação da infração, nas situações de pagamento voluntário, anterior à decisão administrativa ou, ainda, o pagamento de custas pela metade quando o arguido realize o pagamento durante o prazo concedido para apresentação de defesa.

Quanto a sanções acessórias, é fixado um rol extenso, que prevê desde a perda a favor do Estado dos instrumentos e produtos da infração à determinação da publicidade da condenação. No entanto, fixa-se a possibilidade de suspensão da execução das sanções acessórias aplicadas.

Impressiona também o catálogo de medidas cautelares estabelecido por este novo regime que extravasa o catálogo clássico e que abrange as atividades ou práticas desenvolvidas através de sítios na Internet, designadamente: (i) as respeitantes à retirada de conteúdos, (ii) à restrição de acesso a uma interface em linha, (iii) à  imposição de exibição de alertas destinados aos consumidores quando estes acedem à interface em linha ou, mais radicais, como (iv) o bloqueio, por parte dos prestadores de serviços de acesso à Internet, do sítio através do qual as mesmas se desenvolvem, sem prejuízo da comunicação dessa medida à entidade de supervisão central, nos termos da lei aplicável ao comércio eletrónico.

Este novo regime caracteriza-se ainda pelo reforço de competências de investigação. A entidade administrativa competente pode, por exemplo, no caso de contraordenações muito graves, realizar buscas domiciliárias sem necessidade de autorização do Juiz de Instrução caso o visado nisso consinta - o que igualmente levanta sérias dúvidas de constitucionalidade.

Conclui-se, portanto, que sobretudo atendendo às sanções acessórias e às medidas cautelares aplicáveis, bem como aos meios de obtenção de prova que poderão ser utilizados pela autoridade administrativa, o carácter punitivo e dissuasor das coimas surge num plano evidentemente secundário. 

  • Tramitação processual

No que respeita à tramitação dos processos de contraordenação, o novo regime jurídico determina que é a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (“ASAE”) a entidade com competência para fiscalizar, instruir e decidir.

Quanto à defesa, assegura-se o direito de impugnação judicial de todas as decisões tomadas pela autoridade administrativa no decurso de todo o procedimento, ficando apenas excluídas as medidas que se destinem a preparar a decisão final e que não colidam com os direitos ou interesses das pessoas.

É garantido ao arguido o exercício do direito de defesa no prazo de 20 dias, determinando-se como regra a continuidade dos prazos.

Ainda quanto ao direito de defesa, determina-se a obrigatoriedade de constituição de mandatário na fase judicial do processo de contraordenação, sempre que o valor da coima aplicável exceda o dobro do valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância, bem como nos recursos interpostos para o Tribunal da Relação.

Quanto à prova testemunhal, o RJCE prevê que as testemunhas são obrigatoriamente apresentadas por quem as arrola. Apesar de não ser novidade face a outros regimes sancionatórios, esta regra poderá colocar em causa o direito de defesa dos arguidos, pela incapacidade de fazerem comparecer as testemunhas perante a autoridade administrativa.

Admite-se também a possibilidade de tramitação processual eletrónica integral, mediante regulamentação administrativa a aprovar.

O regime das notificações é simplificado, admitindo-se como meios privilegiados a carta simples ou o correio eletrónico.

No que respeita aos recursos, confirma-se a regra do efeito suspensivo do recurso de impugnação judicial da decisão final condenatória.

Confirma-se ainda a proibição da reformatio in pejus na fase judicial, o que se aplaude.

Ao contrário do RGCO e dos regimes sancionatórios em geral, a cobrança coerciva de coimas é feita em processo de execução fiscal, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, podendo a respetiva cobrança coerciva ser atribuída aos agentes de execução.

Por último, assinala-se que aos processos de contraordenação pendentes à data da entrada em vigor do novo RJCE aplica-se, como não poderia deixar de ser, o regime que, em concreto, se afigure mais favorável ao arguido. 

Cláudia Amorim | ca@servulo.com

Rita Serrano | rso@servulo.com

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