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O financiamento do setor do transporte público rodoviário em tempo de COVID-19 (Decreto-Lei n.º 14-C/2020, de 7 de Abril)

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 09 Abr 2020

1. O Decreto-Lei 14-C/2020, de 7 de abril, “estabelece a definição de procedimentos de atribuição de financiamento e compensações aos operadores de transportes essenciais, no âmbito da pandemia COVID -19” (o DL). O DL tem como finalidade principal garantir a realização dos serviços públicos essenciais que foram definidos ao abrigo do Despacho n.º 3547-A/2020 em matéria de serviço público de transporte de passageiros (SPTP) durante o estado de emergência ou decorrentes de medidas excecionais de proteção de saúde pública adotadas que produzem efeitos para além do período de vigência do estado de emergência, salvaguardando a sustentabilidade económico-financeira dos operadores dos serviços públicos de transporte de passageiros, mitigando o impacto negativo que a pandemia COVID-19 tem causado na liquidez das empresas.

2. No passado dia 22 de março, o Governo tinha publicado o Despacho n.º 3547-A/2020, de 22 de março (o Despacho) que veio estabelecer medidas de “execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março”. Entre o conjunto de soluções previstas no despacho, revestem relevância especial para o setor de transporte público rodoviário de passageiros as previstas no disposto do ponto 14, que prevê o deverdas autoridades de transportes locais de “proceder à articulação com os respetivos operadores de transportes, no sentido de”: (i) adequar a oferta à procura e às necessidades de transporte, salvaguardando a continuidade do serviço público essencial; (ii) limitar o número máximo de passageiros transportados a 1/3 da lotação do veículo, de forma a garantir a distância de segurança entre passageiros; (iii) reduzir, sempre que possível, as possibilidades de contacto entre motoristas e demais pessoal de apoio aos passageiros de molde a minimizar o risco de contágio, designadamente obrigando à utilização do acesso dos passageiros pela porta traseira, quando os veículos não disponham de cabine separada para o motorista; (iv) assegurar a limpeza e a desinfeção de veículos, instalações e equipamentos utilizados pelos passageiros e outros utilizadores, de acordo com as recomendações das autoridades de saúde; (v) proceder a alterações à operação de transportes e necessários ajustamentos nos respetivos procedimentos, designadamente no sistema de validação e venda de títulos, que decorram de regras imperativas de salvaguarda da saúde pública e proteção de funcionários e utentes.

Como a letra do mencionado Despacho indica claramente, o seu âmbito de aplicação temporal está limitado à vigência do estado de emergência. Por isso, os efeitos das decisões que as autoridades de transportes tomam ao seu abrigo (rectius, devem tomar, tendo em conta que o Despacho, designadamente o seu ponto 14, impõe expressamente um “dever de agir/decidir” às autoridades de transportes) cessam necessariamente a partir do momento da cessação de vigência do estado de emergência (ou da sua não renovação).

Esta natureza “precária” do Despacho, porém, não impede que as autoridades de transportes estendam a vigência dessas medidas para além do fim do estado de emergência, caso seja necessário. Com efeito, a Lei n.º 52/2015, de 9 de junho, também prevê mecanismos para a modificação dos termos de exploração das autorizações provisórias e dos próprios contratos de serviço público.

Assim se explica que o âmbito de aplicação do DL não se limite, pelo menos integralmente, ao período de vigência do estado de emergência e vá para além deste.

3. No propósito de concretizar as finalidades suprarreferidas,o Decreto-Lei avança com quatro soluções principais:

a) Manutenção do serviço essencial de transporte público de passageiros durante o estado de emergência;

b) Reconhecimento aos operadores do direito de compensação pelo “défice de exploração” decorrente da operação do serviço essencial durante o estado de emergência e das “medidas excecionais de proteção da saúde pública adotadas que produzem efeitos para além do período de vigência do estado de emergência;

c) Derrogação das regras de “consignação” das verbas previstas no Orçamento para o PART (2.º trimestre de 2020) e o PROTransP (e também para o passe 4_18@escola.tp, o passe sub23@superior.tp e o passe Social+), permitindo a sua “canalização” para o pagamento aos operadores da referida “compensação pelo défice de exploração”;

d) Imposição de pagamento aos operadores das compensações relativas à venda do passe 4_18@escola.tp, do passe sub23@superior.tp e do passe Social+ relativas ao 2.º trimestre de 2020, com base no histórico de compensações dos meses homólogos de 2019 (e, portanto, independentemente da procura real).

4. Sobre a primeira - manutenção do serviço essencial de transporte público de passageiros pelo menos durante o estado de emergência -, destaca-se, a partir do preâmbulo do DL e do disposto no artigo 2.º, que o legislador pretende garantir o direito da população à mobilidade , não equacionando assim a hipótese de supressão total do SPTP, mas apenas a redução da oferta em pelo menos 50%(tendo por referência o horário de inverno).

Ainda que o legislador não tenha chegado a definir o conceito de “serviço essencial”, apresenta-se seguro, por um lado, que não se pode suspender completamente o SPTP e, por outro lado, que vigora um limiar mínimo para a redução da oferta (50%). O “serviço essencial” deve ser então definido por cada autoridade de transportes, em função das circunstâncias específicas locais e respeitando estas duas balizas: um mínimo de serviço, excluindo a supressão total, e um máximo de 50% do SPTP.

5. A segunda solução –reconhecimento aos operadores do direito de compensação pelo “défice de exploração” decorrente da operação do serviço essencial durante o estado de emergência e das “medidas excecionais de proteção da saúde pública adotadas que produzem efeitos para além do período de vigência do estado de emergência” – apresenta relevância fundamental para o setor no atual contexto.

a) Olhando para a letra do decreto-lei, o regime de compensação ali previsto é aplicável apenas aos operadores que mantém serviços “mínimos”. Trata-se de uma solução que se apresenta criticável, uma vez que parte do pressuposto (errado) de que, para garantir a disponibilidade do serviço essencial em determinado território, todos os operadores de serviço público que aí operem têm de manter uma parte do seu serviço, aparentando esquecer que uma “rede” de transporte público pode ser assegurada por vários operadores e que a manutenção do “serviço essencial” em determinado território pode não exigir que todos os operadores que integram a rede mantenham algum serviço. E esses operadores que vissem o “seu” serviço totalmente suprimido (pressupondo-se, portanto, que não é “essencial”) continuariam a ter de suportar os custos estruturais associados a esse serviço.

b) Outro aspeto muito relevante a reter prende-se com o controlo da atribuição das verbas previstas no Decreto-Lei pela entidade reguladora do setor (a AMT), que é, contudo, ao que parece, um controlo a posteriori (comunicação até 31 de julho) e não prévio como decorreria do regime legal aplicável à AMT.

Esse controlo tem em vista efeitos corretivos dos apoios concedidos, em caso de sobrecompensação, duplicação de apoios para o mesmo fim e desproporcionalidade em face da oferta de serviços disponibilizados.

c) Corolário das observações anteriores é, como se adivinha, a necessidade de fundamentação económico-financeira pelas autoridades de transportes dos valores a atribuir aos operadores ao abrigo deste decreto-lei, o que, na linha do que tem sido defendido pelo Tribunal de Contas, supõe a adoção de um procedimento administrativo e a respetiva adequada instrução.

6. A terceira solução inovatória deste Decreto-Lei é a derrogação das regras de “consignação” das verbas previstas no Orçamento para o PART (2.º trimestre de 2020) e o PROTransP, permitindo a sua “canalização” para o pagamento aos operadores da referida “compensação pelo défice de exploração”.

Relativamente à utilização das verbas do PART para o 2.º trimestre 2020, são expressamente afastadas:

a) A aplicação das tipologias de medidas de redução tarifária previstas no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 1-A/2020, de 3 de janeiro, e

b) A aplicação do disposto no n.º 5 do artigo 5.º do mesmo diploma legal que previa a afetação obrigatória de 60% das verbas alocadas a cada autoridade de transportes a medidas de redução tarifária (podendo apenas o remanescente ser aplicado no aumento da oferta de serviço e na extensão da rede).

Não existem, assim, para efeitos da aplicação do DL aquelas limitações geralmente previstas para o PART.

Já no que diz respeito à utilização das verbas destinadas ao PROTransP em 2020, salienta-se que, de acordo com o previsto no artigo 4.º deste Decreto-Lei, está dependente de despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e do ambiente e que tais verbas só podem ser usadas em caso de insuficiência das verbas do PART relativas ao 2.º trimestre de 2020.

7. A quarta novidade é a imposição de pagamento aos operadores das compensações relativas à venda do passe 4_18@escola.tp, do passe sub23@superior.tp e do passe Social+ relativas ao 2.º trimestre de 2020, com base no histórico de compensações dos meses homólogos de 2019 (e, portanto, independentemente da procura real).

a) Atendendo à letra do n.º 1 do artigo 5.º e ao último parágrafo do preâmbulo do Decreto-Lei, o pagamento das “compensações” associadas a estes passes sociais é obrigatório e é independente da procura real. Trata-se, portanto, de uma receita com a qual os operadores podem contar, independentemente da aquisição desses passes pelos utilizadores (receita “garantida à cabeça”, com base na procura de 2019).

Nesta base, o montante da “compensação pelo défice de exploração” previsto neste Decreto-Lei – referido no ponto 5. anterior e para cujo financiamento podem ser mobilizadas as fontes de financiamento PART e PROTransP a que nos referimos no ponto 6. anterior – é o que resultar da seguinte operação: Custo Real – Pagamento dos Passes Sociais – Outra Receita Real (se existir).

E, portanto, nesta lógica, as fontes de financiamento PART e  PROTransP, como são mobilizáveis para cobrir o défice de exploração, só podem ser utilizadas se  a “Outra Receita Real” e o “Pagamento dos Passes Sociais” nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei forem insuficientes para cobrir a totalidade dos custos que os operadores tenham de suportar em virtude da disponibilização do serviço essencial durante o estado de emergência e da implementação das medidas excecionais de proteção da saúde pública.

b) A verdade é que o n.º 2 do artigo 5.º do DL vem introduzir alguma nebulosidade nesta simplicidade. É que ali se diz que “as verbas referidas no número anterior [os ditos passes sociais] apenas podem ser utilizadas para cobertura do défice de exploração dos operadores de transporte não cobertos pelos apoios concedidos ao abrigo dos artigos 3.º e 4.º “. Ora, a partir desta formulação, pode suscitar-se a dúvida sobre se a receita dos passes referidos no n.º 1 é uma receita certa com a qual os operadores podem contar (garantida à partida) com base nos meses homólogos de 2019 ou se, afinal, só têm acesso a ela se os apoios concedidos ao abrigo dos artigos 3.º e 4 .º (o PART e o PROTransP) não forem suficientes para cobrir o défice de exploração.

c) A nosso ver, com vista a ultrapassar a assinalada dificuldade (embora mais aparente do que real), a solução está justamente numa interpretação dos dois segmentos normativos que passa pela sua compatibilização, assumindo-se que os dois números têm planos de aplicação diferenciados. Assim:

(i) De acordo com o n.º 1, os operadores têm direito à receita dos ditos passes sociais com base na procura dos meses homólogos de 2019 (essa receita é garantida), independentemente da existência de défice de exploração;

(ii) De acordo com o n.º 2, as verbas previstas e orçamentadas na LOE 2020 para “Passes Sociais” (as que eventualmente sobrem disponíveis depois do pagamento obrigatório nos termos do n.º 1 do artigo 5.º) podem ser usadas para financiar o défice de exploração dos operadores que não tenha sido coberto pelo PART e pelo PROTransP. O n.º 2 estabelece, portanto, a título residual, a possibilidade de afetação das verbas “remanescentes” dos passes sociais para cobertura do défice de exploração: só se aplica se houver défice de exploração e se esse défice não tiver sido coberto pelo PART e pelo PROTransP (o défice de exploração remanescente, portanto).

Nesta medida, o Decreto-Lei prevê também uma derrogação as regras de “consignação” das verbas previstas no Orçamento para os “passes sociais”, permitindo a sua “canalização” para o pagamento aos operadores da referida “compensação pelo défice de exploração”.

8. Em suma, em nosso entender, pode dizer-se que este Decreto-Lei estabelece uma ordem preferencial na mobilização das fontes de financiamento que disponibiliza para o pagamento da compensação pelo défice de exploração, a saber:

1.º Passes sociais com base no histórico de compensações com base dos meses homólogos de 2019 (a acrescer, naturalmente, à receita real que o operador tenha);

Se a “Outra Receita Real” e o “Pagamento dos Passes Sociais nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do DL” forem insuficientes para cobrir a totalidade dos custos que os operadores tenham de suportar em virtude da disponibilização do serviço essencial durante o estado de emergência e da implementação das medidas excecionais de proteção da saúde pública, as autoridades de transportes podem usar as verbas disponíveis provenientes dos regimes ”PART”, “PROTransP” e “Passes Sociais (remanescente)” para pagar a diferença de “Custo Real – Pagamento dos Passes Sociais – Outra Receita Real (se existir)”.

Para esse efeito, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 4.º e no n.º 2 do artigo 5.º do DL, a utilização destas verbas deve seguir a seguinte ordem sequencial:

2.º Verbas pagas no 2.º trimestre de 2020 ao abrigo do PART;

3.º Verbas destinadas ao PROTransP em 2020 (mas só mediante despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e do ambiente); e

4.º Verbas previstas e orçamentadas na LOE 2020 para “Passes Sociais” que resultem disponíveis após o mencionado pagamento obrigatório ás operadores com base na procura dos meses homólogos de 2019.

9. De resto, uma vez que, de acordo com o disposto no artigo 6.º do DL, a entidade fiscalizadora da sua aplicação é a entidade reguladora do setor – a AMT –, afigura-se que, perante as dúvidas suscitadas (entre outras, aquelas que assinalámos supra) acerca da interpretação e aplicação das soluções dele constantes,  será conveniente que as autoridades de transportes as apresentem à AMT para esclarecimento, garantindo que condução do procedimento para atribuição de compensações é realizada nos termos mais ajustados ao entendimento da entidade responsável pela respetiva fiscalização. 

Ana Luísa Guimarães | alg@servulo.com

Hong Cheng Leong | hcl@servulo.com