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A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e os prazos nos procedimentos administrativos (em particular nos de contratação pública)

PUBLICAÇÕES SÉRVULO 25 Mar 2020

1. Entre as medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pela Covid-19, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, determina, nos termos do seu artigo 7.º, que se aplica “o regime das férias judiciais” aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos diversos tribunais.

Embora a lei se refira apenas aos “atos”, o que significa, diretamente, que a partir da entrada em vigor da lei (20 de março de 2020) “não se praticam atos judiciais” (cfr. n.º 1 do artigo 137.º do Código de Processo Civil), aquele artigo acaba também por regular a matéria dos prazos, já que, nos termos do n.º 1 do artigo 138.º do mesmo Código de Processo Civil, os prazos processuais suspendem-se durante as férias judiciais. Esta suspensão – importa sublinhar – retroage a 12 de março de 2020[1], data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (cfr. artigo 37.º deste último diploma).

A intenção do legislador em regular não apenas “atos” mas também “prazos” resulta, inequivocamente, do disposto nos n.ºs 3 e 5 do mesmo artigo 7.º que estabelecem, igualmente, um regime especial de suspensão de prazos. Aliás, o disposto no n.º 5 só se compreende no quadro do regime legal das férias judiciais: é que, nos termos do já referido n.º 1 do artigo 138.º do Código de Processo Civil, “os atos a praticar em processos que a lei considere urgentes” não se suspendem nas férias judiciais.

2. Mas indo mais longe, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, estabelece no n.º 6 deste mesmo artigo 7.º que “o disposto neste artigo aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a [...] prazos administrativos e tributários que corram a favor de particulares” (cfr. alínea c) do n.º 6).

Ao determinar a aplicação àqueles prazos do “disposto neste artigo”, o legislador está obviamente a impor a suspensão desses prazos, isto é, a suspensão que resulta da aplicação do regime das férias judiciais. Dito de outra forma: nos procedimentos administrativos e nos procedimentos tributários ficam suspensos os prazos que neles corram, tal como sucede, aos prazos a correr nos tribunais, durante as férias judiciais. 

3. Mas a questão central que se coloca é a de saber a que prazos é que se aplica o disposto naquela alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º. Ao usar a expressão “que corram a favor de particulares”, a que prazos é que o legislador se quis referir?

A tentação imediata do intérprete é a de construir uma teoria acerca do que seja o decurso de um prazo a favor de particulares, pois, tanto quanto se sabe, quer na legislação administrativa quer na legislação tributária portuguesas esta expressão é absolutamente inédita. O que desde logo suscita uma total desconfiança sobre se teria sido mesmo intenção de um legislador emergencial inovar nesta matéria.

Já no Código Civil, por exemplo, o legislador refere-se a prazos estabelecidos a favor do devedor ou do credor (cfr. artigos 779.º, 780.º, 796.º, 1147.º e 1194.º) com o sentido de o beneficiário poder exercer o direito ou cumprir o dever, consoante o caso, antes de decorrido o prazo estipulado para o efeito. Ou seja, para o direito civil, o benefício de um prazo permite a antecipação de certa conduta. É quanto basta para se concluir que a similitude com a nova disposição legal é, pois, puramente terminológica. Com efeito, é manifesto que a importação deste conceito civilístico para o direito administrativo conduziria a resultados que evidenciariam a improcedência de tal importação.

Assim sendo, usando o legislador uma expressão totalmente nova, viu-se na necessidade de usar um glossário que a explicasse. Eis que é esse o objetivo do disposto no n.º 7: “os prazos tributários a que se refere a alínea c) do número anterior dizem respeito apenas aos atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários”.

Importa, porém, destacar que esta explicação do que se deve entender, para efeitos da Lei n.º 1-A/2020, por um prazo que corre a favor de particulares refere-se apenas aos prazos tributários. Ora, esta restrição tem justamente, quanto a nós, uma importância decisiva na interpretação do disposto na própria alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º. É que, quando o legislador se refere a prazos que correm a favor de particulares (com o sentido que bem entendeu dar a essa inédita expressão legal) está a referir-se apenas aos prazos que correm em certos e determinados procedimentos tributários (os elencados no n.º 7).

De um ponto de vista literal, repare-se que a ausência da vírgula antecedendo a conjunção explicativa “que” mostra que a oração com valor de explicação (“corram a favor de particulares”) não abrange as duas realidades.

Em suma e em conclusão: a alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º refere-se a duas realidades distintas e com extensões também bem distintas:

a) Por um lado, os prazos administrativos em geral; e

b) Por outro lado, os prazos tributários no âmbito dos procedimentos de impugnação judicial, de reclamação graciosa, de recurso hierárquico ou de outros procedimentos de idêntica natureza.

4. O que daqui resulta, portanto, é que, com a entrada em vigor da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, todos os prazos que estejam (ou venham a estar) em curso em quaisquer procedimentos administrativos – incluindo os de contratação pública – ficam suspensos. Não estão apenas suspensos, portanto, os prazos cujo decurso conceda ao particular uma vantagem (como sucede com os de deferimento tácito), e que, numa interpretação sem qualquer apoio nesta lei, seriam os únicos em que se poderia sustentar, inovadoramente, que correm a favor dos particulares, isto é, prazos cujo decurso sem adoção de uma conduta não acarreta para eles um ónus, mas uma vantagem. A verdade, porém, é que a norma da alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 nunca poderia ser lida como restrita aos prazos de deferimento tácito. Com efeito, não pode esquecer-se que o artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (que passou a fazer parte integrante da Lei n.º 1-A/2020, como resulta do seu artigo 2.º), já determinava a suspensão desses prazos. Por isso é que a alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 foi mais longe: todos e quaisquer prazos, como os estabelecidos para a apresentação das propostas, para a formulação de pedidos de esclarecimento, para a apresentação de documentos de habilitação, para a prestação de caução, para a outorga do contrato, etc., encontram-se atualmente suspensos.

5. Importa ainda assim sublinhar que o facto de os prazos estarem suspensos não impede que os procedimentos administrativos sejam tramitados, incluindo a prática de atos administrativos, em todos os casos em que a Administração não está dependente de condutas dos particulares sujeitas a prazo. Por outro lado, a circunstância de os prazos estarem suspensos também não impede que os particulares interessados no procedimento, não querendo manter-se numa posição de inação, adotem as condutas que permitem ou suscitam, por parte da Administração, a prática de atos administrativos.

Isto significa que, por exemplo, num procedimento de ajuste direto (em que só existe um interessado), o operador económico convidado, não obstante o prazo para a apresentação da proposta estar suspenso, a apresente e que, em consequência, a Entidade Adjudicante pratique o ato de adjudicação e lhe solicite os documentos de habilitação; e que aquele, mais uma vez, não querendo fazer uso da suspensão do respetivo prazo, os apresente efetivamente, abrindo caminho à celebração do contrato. Já em qualquer outro procedimento, a suspensão do prazo para a apresentação das propostas inviabiliza a subsequente tramitação, uma vez que nunca se saberá se algum interessado em concorrer não apresentou proposta justamente por estar a beneficiar da suspensão daquele prazo.

É desde logo esta a razão pela qual os próprios procedimentos de ajuste direto previstos no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (que, insista-se, passou a fazer parte integrante da Lei n.º 1-A/2020) não vêm a sua tramitação prejudicada pelo regime de suspensão de prazos imposto pela alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º.

Repare-se até que a circunstância de o n.º 4 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, determinar que todos os contratos celebrados ao abrigo daquele regime excecional “podem produzir todos os seus efeitos logo após a adjudicação”, significa, inclusive, que o legislador prescindiu mesmo da fase de habilitação nos ajustes diretos destinados a celebrar contratos com preço contratual superior a 20.000 euros (que poderia levar a atrasos suplementares por força da suspensão do prazo ao dispor do adjudicatário).

6. A razão de ser deste regime de suspensão dos prazos administrativos em geral parece ser a de que, no atual contexto, a prática de atos jurídicos, seja por parte da Administração, seja por parte de particulares ou dos seus mandatários, se encontra impossibilitada ou particularmente dificultada. Com efeito, a prática de tais atos envolve, na maioria de vezes, um significativo esforço prévio de instrução e preparação, de obtenção de documentos e outros elementos probatórios, de averiguação de dados de facto, de contratação de serviços técnicos de apoio e de uma multiplicidade de outras diligências que se afiguram incompatíveis com uma situação em que existem fortes restrições à liberdade de circulação, muitas empresas e serviços públicos encerrados ou a funcionar em “serviços mínimos” e em que, no geral, o exercício de funções profissionais deve ser feito a partir do domicílio, limitando-se as deslocações e contactos entre pessoas ao mínimo indispensável. Porventura, o legislador português ter-se-á inspirado – como reclamou, por exemplo, o Bastonário da Ordem dos Advogados na sequência da publicação do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março – no regime adotado em Espanha, em que o Real Decreto n.º 463/2020, de 14 de março[2], que declara o estado de alarme para a gestão da crise sanitária provocada pelo Covid-19, determinou, como regra geral, a suspensão dos termos e prazos dos procedimentos administrativos (cfr. disposição adicional terceira).

O problema desta solução, quanto a nós, é o de que – ao contrário do que sucedeu em Espanha, em que foram estabelecidas diversas exceções a tal regra geral – o legislador português se “esqueceu” de acautelar o necessário andamento de certos procedimentos administrativos que estão dependentes do decurso de prazos procedimentais em que os particulares são chamados a praticar atos jurídicos ou operações materiais. Na verdade, a disposição da alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, tal como atualmente configurada, suscita um inaceitável risco de bloqueio da atividade administrativa, tendo em conta que em todos os procedimentos existem atos a praticar pelos particulares (como os atos acima referidos no âmbito de procedimentos pré-contratuais) que, caso não sejam praticados (pelo facto de o particular invocar a suspensão do prazo para a sua emissão), impedem a Administração de prosseguir ou finalizar esses procedimentos.

Em nossa opinião, duas exceções deviam ser previstas à regra geral da suspensão dos prazos que estejam ou venham a estar em curso em quaisquer procedimentos administrativos.

A primeira prende-se, evidentemente, com os procedimentos de contratação pública a que se refere o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março. Embora, como já se explicou, a suspensão dos prazos não implique necessariamente a suspensão do procedimento de ajuste direto, a verdade é que, se o operador económico não apresentar a proposta, a Entidade Adjudicante fica confrontada com o bloqueio do procedimento, pois aquele pode sempre invocar que o prazo para a apresentação da proposta está suspenso. Impõe-se, por isso, uma exceção que afaste a regra geral da suspensão no que respeita aos prazos que correm no âmbito dos procedimentos de ajuste direto para a formação dos contratos necessários à implementação das medidas urgentes de resposta à situação de emergência de saúde pública a que a Lei n.º 1-A/2020 e o Decreto-Lei n.º 10-A/2020 se referem.

A segunda exceção que deverá ser prevista prende-se com os procedimentos administrativos que sejam necessários para assegurar o funcionamento básico dos serviços administrativos, desde logo – mas não exclusivamente – procedimentos de contratação pública para aquisição dos bens e serviços que se afigurem imprescindíveis para a continuação das atividades administrativas que, dentro dos condicionamentos conhecidos, se encontram em curso ou precisam de ser iniciados. Como é evidente, urge uma alteração legislativa que salvaguarde estas situações, consagrando uma exceção à regra geral de suspensão dos prazos. Uma exceção que poderá ser conformada tendo por referência a finalidade do procedimento – procedimentos necessários a assegurar o funcionamento básico dos serviços, por exemplo – ou tendo por referência o grau de afetação dos interesses envolvidos – excecionando-se os procedimentos cuja paralisação seria gravemente prejudicial para o interesse público. Em qualquer dos casos, e por forma a diminuir, na medida do possível, o risco de insegurança jurídica, deverá ficar especificado, em sede legislativa, que cabe ao órgão competente para a decisão de contratar, ao desencadear o procedimento, ou ao retomá-lo, fundamentar as razões pelas quais justifica o seu enquadramento na referida exceção, afastando-se da regra geral de suspensão de prazos.

João Amaral e Almeida | jaa@servulo.com

António Cadilha | ac@servulo.com


[1] A suspensão só ocorre quanto a prazos que estivessem a correr na data da entrada em vigor da lei, isto é, em 20 de março de 2020, já que, nos termos do n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil, ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. Por outras palavras: prazos que tenham terminado antes de 20 de março de 2020 observarão as respetivas consequências legais, não estando pois suspensos.

 

[2] Tal como modificado pelo Real Decreto n.º 465/2020, de 17 de março.