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A despenalização da morte assistida: Algumas considerações críticas sobre a Lei n.º 22/2023, de 25 de maio

SÉRVULO PUBLICATIONS 27 Jul 2023

Depois de quatro Projetos de Lei, dois dos quais alvo de declarações de inconstitucionalidade (cfr. Acórdãos n.º 123/2021 e n.º 5/2023), foi aprovada a Lei n.º 22/2023, de 25 de maio, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal.

Assim sendo, foram alterados os artigos 134.º (homicídio a pedido da vítima), 135.º (incitamento ou ajuda ao suicídio) e 139.º (propaganda do suicídio). Com efeito, estabeleceu-se uma “causa de justificação”, na qual se integram os casos de morte medicamente assistida, quer seja através da eutanásia ou do suicídio medicamente assistido. Desta feita, a conduta que não cumpra com as condições previstas na Lei continua a ser punida como crime.

Porém, a Lei revela diversos aspetos controversos e dúbios, designadamente:

i) Com o fito de ultrapassar a indeterminabilidade de alguns conceitos, apresenta diversas definições na sua parte inicial. Porém, em virtude da sua amplitude e de não serem totalmente coincidentes com a terminologia médica, os profissionais de saúde poderão continuar a ter dúvidas sobre o que pode ou não integrar o seu âmbito;

ii) Prevê-se que a morte medicamente assistida admita tanto a conduta ativa do profissional de saúde (“eutanásia”), como a conduta ativa do doente (“suicídio medicamente assistido”). Por sua vez, estabelece-se uma relação de subsidiariedade entre as duas condutas, na medida em que a morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente. No entanto, questiona-se quais as condições e critérios que terão de estar verificados para se estar perante uma incapacidade física;

iii) Ao utilizar os conceitos de “doença grave e incurável”, “lesão definitiva de gravidade extrema”, “sofrimento de grande intensidade”, a Lei não fixa um qualquer prognóstico vital, contrariamente a outros diplomas relevantes nesta matéria, designadamente a Lei n.º 31/2018, de 18 de julho, que elenca um conjunto de direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, na qual se prevê um prognóstico vital estimado de 6 a 12 meses. O que significa que, ainda que as duas leis colidam neste ponto, o aspeto fundamental a ser atendido pelos profissionais de saúde para efeitos da morte medicamente assistida não punível parece residir na existência de um quadro fáctico que se integre num daqueles três conceitos e não no prognóstico do tempo de vida;

iv) Relativamente à administração dos fármacos letais, refere-se que “além do médico orientador e de outro profissional de saúde, obrigatoriamente presentes aquando da administração dos fármacos letais, podem estar presentes outros profissionais de saúde por indicação do médico orientador, assim como pessoas indicadas pelo doente, desde que o médico orientador considere que existem condições clínicas e de conforto adequadas”. Não é absolutamente claro quais os “os outros profissionais de saúde” que poderão estar presentes, bem como quais os critérios que justificam a sua presença aquando da administração de fármacos letais;

v) Na Lei são referidos diversos deveres que recaem sobre os profissionais de saúde, entre os quais se destaca

    1. Informar o doente de forma objetiva, compreensível, rigorosa, completa e verdadeira sobre o diagnóstico, os tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis, os resultados previsíveis, o prognóstico e a esperança de vida da sua condição clínica”. É nesta sede que se enquadra o dever de o médico prestar toda a informação ao doente, designadamente a relativa aos cuidados paliativos.
    2. Informar o doente sobre os métodos de administração ou autoadministração dos fármacos letais, para que aquele possa escolher e decidir de forma esclarecida e consciente”. Exige-se uma atuação meramente informativa, sem intuito de qualquer propaganda ou publicidade de produto, objeto ou método preconizado como meio para produzir a morte, sob pena de, em alguns casos, se preencher o tipo legal de propaganda do suicídio.
    3. Assegurar que a decisão do doente é livre, esclarecida e informada”. Nesta sede, impõe-se assegurar que a morte medicamente assistida assenta na vontade – livre, esclarecida e informada – do doente. Assim, cabe ao profissional de saúde, que tem o domínio técnico, transmitir a informação adequada, devendo este ser isento e não incitar qualquer conduta suicida, sob pena de preencher o tipo legal de incitamento ou ajuda ao suicídio.
    4. Assegurar as condições para que o doente possa contactar as pessoas com quem o pretenda fazer”. Com efeito, este dever acaba por ser atenuado, pois aquando da administração dos fármacos letais o médico orientador pode considerar que não existem condições clínicas e de conforto adequadas, não permitindo, por isso, que estejam presentes as pessoas indicadas pelo doente.

Destaca-se ainda a articulação da Lei com o regime dos artigos 150.º (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos) e 156.º (Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários) do CP.  Assim sendo, à semelhança do que sucedia anteriormente, a renúncia do doente a medidas de sustentação da vida ou a interrupção do respetivo tratamento é uma conduta atípica, lícita, sendo que o desrespeito dos profissionais de saúde pela vontade do doente é punível criminalmente.

Saliente-se que a Lei entrará em vigor trinta dias após a publicação da respetiva regulamentação, dispondo o Governo de noventa dias após a publicação para aprovação daquela, prazo que terminará em outubro.

Por fim, é de salientar que a aprovação da presente Lei não se afigurou consensual e pacífica, podendo ainda vir a sofrer alterações. Recorde-se que o Decreto da Assembleia da República, que subjaz à presente Lei, foi vetado pelo Presidente da República, tendo sido confirmado pela maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, com um total de 129 votos a favor, 81 votos contra e uma abstenção.  Por conseguinte, os deputados de um dos partidos políticos da Assembleia da República já manifestaram que irão avançar com um pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade.

Cláudia Amorim | ca@servulo.com

Juliana Campos | jca@servulo.com