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Medidas excecionais de Contratação Pública e de autorização de despesa pública para resposta à epidemia SARS -Cov -2

SÉRVULO PUBLICATIONS 16 Mar 2020

A) Enquadramento

1. No âmbito da resposta que foi requerida ao Estado Português para o combate ao surto de COVID-19, foi publicado, em 13 de março, o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, que “estabelece medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – COVID 19”.

A preocupante facilidade de transmissão do vírus, que, em 11 de março, conduziu à sua classificação como pandemia pela Organização Mundial de Saúde, justificou que fossem incluídas nos Capítulos IV e V deste diploma medidas excecionais que incentivam à redução dos contactos sociais, incluindo a suspensão de atividades letivas e não letivas (artigo 9.º), a interdição de viagens de finalistas ou similares (artigo 11.º), a restrição de acesso a estabelecimentos de restauração, bebidas ou dança (artigo 12.º) e a restrição de acesso a serviços e edifícios públicos (artigo 13.º).

Com o mesmo propósito de contenção da propagação do vírus, os Capítulos VI e VII determinam regras para justificação de faltas e adiamento de diligências processuais e procedimentais (artigo 14.º) e para encerramento de instalações onde devam ser praticados atos processuais ou procedimentais (artigo 15.º). Evitam-se ainda os contactos que resultariam da preocupação com o termo de prazos legais, prevendo-se a atendibilidade de documentos expirados (artigo 16.º), suspendendo-se prazos de deferimento tácito de autorizações e licenciamentos (artigo 17.º) e autorizando-se a realização de assembleias gerais fora dos prazos estatutariamente previstos (artigo 18.º).

É ainda o mesmo propósito que justifica a aprovação de medidas de proteção social, de apoio à parentalidade e de apoio aos trabalhadores independentes nos Capítulos VIII a X.

 

B) Medidas excecionais de contratação e de realização de despesa pública: âmbito de aplicação

2. Contudo, o aspeto fulcral de resposta a este surto consiste na adoção de medidas excecionais de contratação pública e de autorização para realização de despesa pública que flexibilizam os procedimentos a adotar pelas entidades adjudicantes que têm responsabilidades no combate à epidemia. O impacto destas medidas, previstas nos Capítulos II e III do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, justifica que se confira especial atenção a esta estratégia de facilitação de compras públicas excecionais. Naturalmente, em virtude do propósito deste texto, procede-se a uma abordagem meramente descritiva, e não crítica, que visa auxiliar os decisores públicos no aproveitamento das soluções agora aprovadas. 

3. O âmbito objetivo de aplicação destas medidas é recortado em razão dos contratos que sejam destinados “à prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção epidemiológica por COVID -19, bem como à reposição da normalidade em sequência da mesma” (n.º 2 do artigo 1.º).

É claro que essa delimitação obriga o decisor público a um dever de fundamentação que justifique o enquadramento do contrato que pretende celebrar no âmbito destas medidas de emergência. Mas, uma vez cumprido esse dever de fundamentação, observa-se uma flexibilidade superior no tocante ao seu âmbito temporal. Com efeito, ao contrário do que sucedeu no caso de anteriores regimes excecionais de contratação pública, não é agora fixado um termo concreto para a sua vigência. Na prática, as medidas poderão ser aproveitadas enquanto as entidades adjudicantes precisarem de fazer face ao surto e, mesmo depois disso, enquanto precisarem de assegurar a reposição da normalidade social. A morosidade desse período é ainda hoje imprevisível.

A lei apenas fixa com maior precisão o seu termo inicial. Apesar de o diploma entrar em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (isto é, em 14 de março – cfr. artigo 36.º), estas medidas são viabilizadas logo desde o dia 12 de março (dia da aprovação do diploma – cfr. artigo 37.º).

No que concerne ao âmbito subjetivo, as medidas previstas nos Capítulos II e III (e apenas essas) são recortadas em razão das (i) entidades do sector público empresarial e (ii) do sector público administrativo, (iii) bem como, com as necessárias adaptações, das autarquias locais. O alcance deste âmbito é especialmente ambicioso, visto que qualquer dos sectores em causa – seja o administrativo, de natureza burocrática e institucional, seja o empresarial – não é reduzido ao próprio Estado. Isto implica que boa parte das pessoas coletivas abrangidas pelo artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) pode beneficiar deste regime flexibilizador, desde que cumpra o referido dever de fundamentação que justifique o enquadramento do contrato que pretende celebrar nestas medidas de resposta ao surto. 

 

C) Medidas excecionais de contratação pública: em especial, o recurso ao ajuste direto

4. Como tem sucedido com a generalidade das medidas excecionais de contratação pública aprovadas nos últimos anos, o principal pilar da estratégia legislativa reside na permissão para recurso mais amplo ao procedimento de ajuste direto. Aliás, a frequência com que essa estratégia tem sido adotada na legislação nacional tem convencido alguns comentadores de que seria preferível promover a consolidação de um regime uniforme de contratação pública em situações de emergência (porventura como regime autónomo incluído no próprio CCP), que evite a necessidade de dispersão de soluções de recurso ao ajuste direto em diplomas avulsos.

4.1. A primeira medida consiste na autorização para celebração de contratos de empreitada, locação ou aquisição de bens móveis ou aquisição de serviços – sem limite de valor – através do recurso ao fundamento material de adoção do ajuste direto previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do CCP, isto é, “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa”.

É evidente que, com esta autorização, o legislador não pode estar simplesmente a reproduzir a solução prevista no CCP, visto que se limitaria então a informar os decisores públicos acerca de uma alternativa procedimental de que eles já dispõem. Pelo contrário, a lei pretende aqui esclarecer que se considera, desde já – por mero efeito legal –, que a subsunção de um contrato no âmbito recortado no artigo 1.º satisfaz a demonstração de que ele se enquadra na cláusula de urgência prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º do CCP. Isto, é claro, sem prejuízo de o órgão que decide contratar não poder deixar de cumprir o mencionado dever de fundamentação quanto à utilidade do contrato para a satisfação de uma necessidade descrita no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 (explicando desse modo em que medida o contrato beneficia deste regime excecional). Contudo, uma vez cumprido esse dever de fundamentação, a lei considera permitido o recurso a esta cláusula de ajuste direto sem limite de valor.

Como sempre sucede, porém, o decisor não poderá esquecer que o afastamento da concorrência só é permitido “na medida do estritamente necessário”, o que obriga a cautelas na celebração de contratos cuja vigência temporal seja excessiva para o objetivo de resposta ao surto que a lei aqui tem em vista.

4.2. Num segundo plano – agora já com um limite quantitativo –, o n.º 2 do artigo 2.º do diploma estende o recurso ao ajuste direto simplificado previsto nos n.os 1 e 3 do artigo 128.º do CCP para contratos cujo preço seja igual ou inferior a € 20.000, o que implica quadruplicar o limite geral de € 5.000 previsto no CCP. Neste caso, porém, a lei prefere reservar esta solução para contratos referentes a bens e serviços, afastando a sua utilização no caso de empreitadas – ao contrário do que sucede com a utilização transversal do ajuste direto por motivos de urgência imperiosa a que se refere o n.º 1 do artigo 2.º, que, repita-se, não conhece limites de valor e também beneficia contratos de empreitada.

Mostra-se especialmente significativa a referência ao afastamento do n.º 3 do artigo 128.º do CCP, o que – fruto da remissão que este último preceito formula para o artigo 465.º do mesmo Código – implica que fica dispensada qualquer obrigação de publicitação, no portal base, dos contratos relativos a bens e serviços até ao limiar de € 20.000.

4.3. Num terceiro plano, são especialmente úteis para as entidades adjudicantes as duas medidas adicionais de dispensa de formalidades previstas no n.º 3 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 – as quais se aplicam, esclareça-se, a qualquer ajuste direto abrangido pelo diploma, independentemente de se enquadrar nalgum dos casos referidos no n.º 1 ou no n.º 2 do mesmo artigo 2.º.

Por um lado, fica dispensada a aplicação dos impedimentos à contratação por ajuste direto previstos nos n.os 2 ou 5 do artigo 113.º do CCP (contratação reiterada do mesmo operador económico ou contratação de quem realizou prestações gratuitas em favor da entidade adjudicante, no espaço de três anos económicos).

Por outro lado, afasta-se a preferência pela consulta prévia a que se refere o artigo 27.º-A do CCP, dispensando a necessidade de, em geral, o recurso a critérios materiais de ajuste direto redundar no convite a um mínimo de três entidades – exigência essa que, aliás, uma parte significativa da doutrina já tem reconhecido como inútil e ingénua no âmbito da contratação pública em geral.

4.4. Num quarto plano, é afastada uma das soluções mais conhecidas de transparência no recurso ao ajuste direto: a publicitação do contrato no portal dos contratos públicos em momento prévio à execução do contrato, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 127.º do CCP.

Evidentemente, o n.º 4 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 não dispensa as entidades adjudicantes do cumprimento de obrigações de transparência, visto que qualquer adjudicação tem de ser comunicada ao Ministério das Finanças e à tutela e continuar a ser publicitada no referido portal. Mas o ponto fulcral da estratégia legislativa – prevista no n.º 5 do artigo 2.º – reside na circunstância de a produção dos efeitos não precisar de aguardar por aquela publicitação, o que constituiria um dos principais obstáculos à celeridade que é requerida das entidades adjudicantes para que os seus contratos iniciem imediatamente a sua execução.

Porém, observa-se que esta solução acaba por produzir um efeito colateral ainda mais significativo: uma vez que este n.º 5 do artigo 2.º autoriza a produção de efeitos logo após a “adjudicação”, isso implica, na prática, que a própria obrigação de habilitação – e qualquer outra fase procedimental posterior à adjudicação – fica igualmente adiada para ser cumprida já após o início da execução do contrato.

Em todo o caso, esta solução só pode estar pensada para os contratos que não beneficiem já do regime simplificado previsto no n.º 2 do artigo 2.º – visto que, para esses, o recurso a esse regime simplificado já determina a dispensa da publicitação e de qualquer outra formalidade posterior à adjudicação.

4.5. Com esse mesmo propósito, o n.º 6 do artigo 2.º confere uma importante dispensa de cumprimento dos apertados pressupostos previstos no artigo 292.º do CCP – o que inclui a limitação do adiantamento a 30% do preço contratual e a prestação de caução pelo montante adiantado – para que a entidade adjudicante possa efetuar adiantamentos do preço de bens e serviços, o que pode constituir uma das condições colocadas pelos fornecedores para aceitarem contratar num caso de emergência.

4.6. É ainda a mesma lógica de aceleração na produção de efeitos pelos contratos celebrados em situação de emergência que explica o alargamento do n.º 5 do artigo 45.º da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, a todos os contratos abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 10-A/2020. Como se sabe, combatendo a tendência de muitas entidades adjudicantes para iniciarem apressadamente a execução dos seus contratos antes da obtenção do visto prévio do Tribunal de Contas – impondo factos consumados que podiam inutilizar a eventual recusa do visto, quando esta viesse depois a ser notificada –, o n.º 4 do artigo 45.º da Lei n.º 98/97 veio a impor uma proibição geral de produção de efeitos, antes da concessão do visto, por atos e contratos de valor superior a € 950.000. Apenas ficavam salvaguardados, nos termos do n.º 5 desse artigo 45.º, os contratos celebrados na sequência de procedimento de ajuste direto por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não imputáveis a esta, e apenas quando não pudessem ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos previstos na lei.

É justamente esta exceção que é agora alargada pelo n.º 8 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020: qualquer contrato celebrado ao abrigo deste regime excecional também pode produzir efeitos imediatos, independentemente de aguardar pela concessão do visto ou da declaração de conformidade. Em especial, permite-se mesmo a produção dos efeitos financeiros – pagamentos imediatos ao adjudicatário –, o que jamais fora autorizado pelo regime geral da Lei n.º 98/97, mesmo no caso de contratos de valor não superior a € 950.000.

4.7. Finalmente, no leque de medidas atinentes à contratação pública, é ainda dispensada a autorização prévia para que a entidade adjudicante proceda, individualmente, a aquisições de bens ou serviços que estejam abrangidos por um acordo-quadro do Sistema Nacional de Compras Públicas. Assim se evitam, neste âmbito excecional, os preocupantes efeitos do espartilho a que os decisores públicos das entidades vinculadas àquele Sistema têm sido submetidos pela obrigação de recorrerem a compras centralizadas mesmo em casos em que os acordos-quadro se mostram manifestamente ineficientes e em que qualquer decisor individual poderia obter condições bem mais competitivas no mercado. 

 

D) Medidas excecionais de flexibilização da autorização para realização de despesa pública

5. Embora seja no domínio da contratação pública que o Decreto-Lei n.º 10-A/2020 apresenta algumas das suas medidas mais visíveis, é igualmente decisiva a circunstância de essas regras excecionais de contratação serem acompanhadas por autorizações para dispensa de outras obrigações pré-contratuais que poderiam ser incompatíveis com a situação de emergência em curso. Algumas dessas medidas são deveras apelativas em face do impacto que produzem na desburocratização do processo aquisitivo.

Assim, para qualquer procedimento de contratação pública abrangido por este diploma:

a) Na ausência de pronúncia em contrário, considera-se tacitamente deferido qualquer pedido de autorização da tutela financeira e sectorial, quando exigível por lei, logo que decorram 24 horas após a remessa, por via eletrónica, à entidade pública com competência para a autorização (alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º);

b) Essa simples remessa é já considerada como contendo, por mero efeito legal, a fundamentação suficiente para instruir o pedido de autorização (alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º);

c) Também se consideram tacitamente deferidas as despesas plurianuais que não sejam expressamente indeferidas, no prazo de três dias, após apresentação do pedido de autorização para portaria de extensão de encargos junto do membro do Governo responsável pela área das finanças, desde que o contrato se enquadre numa lista de bens e serviços elegíveis aprovada por despacho desse membro do Governo e do responsável pela tutela; nesse caso, este último é que ficará responsável pelos procedimentos de publicação da portaria (alínea c) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 3.º);

d) O mesmo membro do Governo responsável pela área sectorial é competente para autorizar as alterações orçamentais que envolvam reforço de verbas, por contrapartida de outras rubricas de despesa efetiva (alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º);

e) Considera-se tacitamente deferida, logo que decorridos três dias após a apresentação do respetivo pedido, a descativação de verbas nos casos em que tal seja devidamente justificado para o cumprimento dos objetivos previstos no artigo 1.º do diploma (alínea e) do n.º 1 do artigo 3.º);

f) Ficam ainda dispensadas as habituais autorizações para a aquisição de serviços relativos a estudos, pareceres, projetos e serviços de consultoria, bem como quaisquer trabalhos especializados, as quais são confiadas à competência do membro do Governo responsável pela área sectorial (artigo 4.º). 

6. Num plano paralelo, o artigo 7.º promove uma importante flexibilização da competência para autorizar a celebração de contratos de aquisição de serviços pelas entidades do sector público administrativo e empresarial da área da Saúde e por entidades, que embora sob outra tutela, exercem competências que incidem sobre os domínios deste diploma. Nestes casos, a autorização compete ao dirigente máximo ou órgão máximo de gestão, bastando a comunicação posterior aos membros do Governo responsáveis pela tutela.

Esta solução é estabelecida em benefício de qualquer órgão ou serviço integrado no Ministério da Saúde (Administração direta do Estado) ou de outro instituto ou entidade empresarial sob a sua tutela (Administração indireta, como a SPMS ou Hospitais EPE). E, fora da tutela do Ministério da Saúde, é estabelecida também em benefício da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, do Hospital das Forças Armadas, do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos do Instituto de Ação Social das Forças Armadas.

Estas medidas completam as restantes soluções do Capítulo III para flexibilização da contratação de recursos humanos, da realização de trabalho extraordinário ou suplementar e da composição de juntas médicas (artigos 5.º, 6.º e 8.º). 

 

E) Nota conclusiva: legalidade vs. estado de necessidade 

7. As soluções adotadas formam, em conjunto, um esforço de desburocratização global dos procedimentos pré-contratuais e dos procedimentos de autorização de realização da despesa pública que – espera-se – procura ser suficiente para habilitar as entidades adjudicantes que exercem responsabilidades na proteção da vida e da integridade física dos cidadãos perante um dos maiores desafios que o país conheceu nas últimas décadas.

Naturalmente, esse esforço legislativo pretende ainda cingir-se às possibilidades de atuação da Administração Pública no quadro da estrita legalidade. Mas não se descarta que, num cenário de agravamento das condições deste surto, os órgãos contratantes precisem de recorrer a mecanismos extraordinários de contratação extralegais, no quadro do estado de necessidade administrativa a que se refere o n.º 2 do artigo 3.º do Código do Procedimento Administrativo.

Essa hipótese será ainda mais ponderável se, no plano constitucional, vier a ser acompanhada por uma declaração de estado de exceção nos termos previstos no artigo 19.º da Constituição. Embora essa declaração incida essencialmente sobre a suspensão de direitos, liberdades e garantias, ela pode auxiliar o decisor administrativo no esforço de justificação do recurso a mecanismos de contratualização não previstos no quadro da legalidade vigente.

Pedro Fernández Sánchezpfs@servulo.com