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O impacto da pandemia Covid-19 na execução de contratos administrativos

SÉRVULO PUBLICATIONS 24 Mar 2020

1. A situação de crise internacional de saúde pública que atualmente se vive por força da evolução epidemiológica do vírus SARS-COV-2 é uma situação que está a produzir um enorme impacto em todos os domínios da vida social e económica e à qual não ficaram alheios, naturalmente, os contratos administrativos em curso, cuja execução ficará sujeita a inevitáveis disrupções e vicissitudes.

O objetivo deste texto é o de procurar enquadrar juridicamente, de um modo muito sucinto, os potenciais efeitos que tal situação poderá projetar nos contratos administrativos em execução tendo por base o quadro jurídico-legal em vigor (enquadramento que terá naturalmente que ser moldado ou completado, em cada caso concreto, em função do regime que eventualmente decorra do clausulado contratual vigente).

2. Os efeitos causados pela proliferação do vírus e pelas medidas tomadas pelos diferentes Estados para procurar conter e mitigar essa proliferação poderão desde logo determinar, em certos casos, a impossibilidade de execução de determinadas prestações por parte dos contraentes privados. Pense-se, por exemplo, numa situação em que a realização de uma determinada empreitada ou a prestação de um determinado serviço exige, de modo insubstituível, certos bens cuja obtenção se afigura impossível, no presente contexto, por força das restrições à circulação internacional ou dos condicionamentos na produção em diferentes países. Nesta hipótese, estamos, claramente, perante uma situação qualificável como caso de força maior, ou seja, perante um acontecimento externo às partes, imprevisível (isto é, que elas não poderiam antecipar ou controlar) e inevitável (ou seja, cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou circunstâncias pessoais dos contraentes), que torna inviável o cumprimento de determinada obrigação.

A verificação de um evento deste tipo – sempre que esteja em causa, como sucederá tipicamente nestes casos, uma impossibilidade temporária, uma vez que o obstáculo à execução não é definitivo - tem, desde logo, um efeito exoneratório, excluindo a responsabilidade do devedor pelos prejuízos causados pelo não cumprimento pontual da sua obrigação. Simultaneamente, o credor fica impedido de sancionar, seja por via de multas contratuais ou resolução do contrato, o incumprimento verificado.

Se o contrato administrativo em causa não tiver uma regulação específica sobre estas situações, essa exoneração da responsabilidade do devedor resultará da aplicação do regime da impossibilidade de cumprimento temporária não imputável ao devedor previsto no artigo 792.º, n.º 2 do Código Civil (aplicável aos contratos administrativos por força da remissão constante do n.º 4 do artigo 280.º do Código dos Contratos Públicos, na medida em que inexiste neste Código uma disciplina própria para estas situações).

Caso o contrato administrativo em causa regule especificamente os casos de força maior – como sucede, por exemplo, nos grandes contratos de empreitada de obras públicas ou concessão de serviços públicos – esse efeito exoneratório está certamente plasmado no clausulado contratual e a ele é por vezes adicionado, em determinadas circunstâncias, o direito do contraente privado à reposição do equilíbrio financeiro do contrato.

3. Destes casos de impossibilidade do cumprimento de prestações deverão distinguir-se as situações em que esse cumprimento atempado ainda é objetivamente possível, mas determinará para o contraente privado uma dificuldade ou um custo acrescido. Será a hipótese em que, no exemplo referido, é possível adquirir e transportar o bem necessário à execução da empreitada ou à prestação do serviço mas a um preço exponencialmente superior àquele que vigorava antes da referida crise de saúde pública; ou a situação em que, num contrato de concessão de serviço público, se verifica uma significativa descida na procura, por parte dos utentes, do serviço de interesse geral que é prestado pelo concessionário e no qual baseia a sua remuneração; ou ainda a hipótese em que a execução do contrato implica a obtenção de um financiamento bancário cujos custos se tornam significativamente mais acrescidos.

Todas estas situações serão eventualmente enquadráveis no designado caso imprevisto (ou alteração das circunstâncias), o qual constitui fundamento para a modificação dos contratos administrativo (cfr. artigo 312.º, alínea a) do Código dos Contratos Públicos) ou para a atribuição ao contraente privado de uma compensação financeira segundo a equidade (cfr. artigo 314.º, n.º 2 do mesmo Código).

Para que esta figura seja aplicável é necessário, por um lado, que a onerosidade acrescida em que incorre o privado decorra de uma circunstância superveniente que se qualifique como imprevisível, o que claramente sucederá no caso em apreço tendo em conta a absoluta incapacidade de antecipação da pandemia do Covid-19; mas é ainda exigível que o impacto financeiro decorrente dessa circunstância para o cumprimento do contrato seja anormal, gerando uma onerosidade excessiva, cuja imputação, em exclusivo, ao contraente privado seria intolerável à luz do princípio da boa-fé (o que só será verificável em concreto).

Verificados estes pressupostos, e caso o contraente privado continue a cumprir o contrato nos termos estipulados, a Administração constitui-se no dever de auxiliar o co-contratante, o qual poderá assumir duas modalidades: passar por uma readaptação do contrato que tenha em conta as dificuldades que afetam a sua execução, designadamente por via de uma revisão dos preços contratuais; ou consistir no pagamento ao particular de uma indemnização compensadora da excessiva onerosidade no cumprimento da prestação. Em qualquer dos casos, a lógica não é a da reparação integral dos prejuízos sofridos – assumindo o contraente público o risco do caso imprevisto –, mas a da Administração ajudar o co-contratante a fazer face às dificuldades que circunstâncias totalmente imprevistas causaram ao cumprimento desse contrato, assumindo parte dos encargos acrescidos e anormais que ele tenha inesperadamente de suportar por força dessas circunstâncias.

António Cadilha | ac@servulo.com

 

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