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Restrições à venda on-line de medicamentos: o Tribunal de Justiça pronuncia-se

SÉRVULO PUBLICATIONS 09 Nov 2020

O Tribunal de Justiça[i] teve mais uma vez a oportunidade de se pronunciar sobre a publicidade online de medicamentos (no caso, medicamentos não sujeitos a receita médica, MNSRM), a instância do cour d’appel de Paris, confrontado com a tradicionalmente restritiva legislação francesa. No processo, foram colocadas ao Tribunal de Justiça questões diversas sobre se as normas do Tratado (e o princípio da livre circulação de mercadorias – artigo 34.º TFUE), do Código Comunitário dos Medicamentos (artigo 85.º-C da Diretiva 2001/83/CE[ii]) ou da Diretiva do comércio eletrónico (Diretiva 2000/31/CE[iii]) eram compagináveis com uma legislação nacional (francesa) que limitava, por diversas formas, a publicidade que uma farmácia comunitária dos Países Baixos fazia pela Internet e dirigida a clientes franceses.

Em concreto, o cour d’appel de Paris perguntou ao Tribunal de Justiça se as normas da União Europeia permitem que um Estado membro (no caso, a França) possa impor aos farmacêuticos de outro Estado membro (no caso, os Países Baixos), regras específicas que:

– Proíbem atrair clientela através de meios e procedimentos considerados contrários à dignidade da profissão;

- Proíbem o incitamento dos doentes a um consumo abusivo de medicamentos;

– Impõem a obrigação de cumprir as boas práticas de distribuição de medicamentos definidas pelo Estado, exigindo adicionalmente, “a inclusão de um questionário de saúde no processo de encomenda em linha de medicamentos”; e

- Proíbem “a utilização da referenciação paga”, nos termos da legislação nacional.

Recorde-se que, embora a publicidade dos medicamentos tenha sido objeto de harmonização exaustiva em sede de legislação do medicamento, como se explicou em Atribuição e harmonização na União Europeia: o caso dos medicamentos (2018, pp. 99, citando os acórdãos Gintec ou Abcur), o certo é que a exaustividade não cobria, naturalmente, os domínios não abrangidos pela harmonização, como a venda a retalho de medicamentos a consumidores finais (idem, pp. 571-573)  nem a venda online, mormente de MNSRM, objeto de regras especiais na UE. 

E assim não foi surpreendente que o Tribunal de Justiça tenha considerado que a remissão do Código Comunitário para o regime da Diretiva 2000/31/CE (e Diretiva 2015/1535) e a interpretação destas últimas impunha a conclusão de que a venda online de MNSRM constitui “serviço da sociedade da informação” regido por estes diplomas. Ora, continua, estas diretivas preveem a possibilidade de os Estados membros adotarem medidas derrogatórias ao princípio da livre circulação dos serviços da sociedade da informação, se abrangido (como é) pelo domínio coordenado, se estiverem preenchidos os requisitos cumulativos da norma (artigo 3.º, n.º 4, alíneas a) e b), e acórdão Airbnb Ireland, C?390/18).

Assim, essas restrições devem ser apreciadas com base nas diretivas e já não no Tratado. E, deste modo, o Tribunal de Justiça considerou ser lícito aos Estados membros destinatários da publicidade proibir certas formas de atração de clientes, mormente através da “distribuição em grande escala de mensagens publicitárias postais e de folhetos publicitários fora da sua farmácia de oficina, desde que, no entanto, isso não impeça o prestador de serviços em causa de efetuar qualquer publicidade fora da sua farmácia, independentemente do seu suporte ou amplitude”. Mas só o poderá fazer se a legislação não se traduzir numa proibição total da publicidade, e se for limitada ao necessário e proporcional para garantir a ordem pública, a protecção da saúde pública, a segurança pública ou a defesa dos consumidores; e, finalmente, se o serviço da sociedade da informação em causa efetivamente lese esses objetivos ou comporte um risco sério e grave de prejudicar estes últimos.

Em particular, o Tribunal de Justiça considerou que, tendo em conta a importância da relação de confiança entre um profissional de saúde e o seu paciente, a proteção da dignidade de uma profissão regulamentada (artigo 8.º, n.º 1, da Diretiva) constitui uma razão imperiosa de interesse geral relativa à proteção da saúde pública suscetível de justificar uma restrição à livre prestação de serviços. O que implicou o reconhecimento aos Estados membros de uma margem de apreciação quanto ao nível e modo da protecção de saúde pública que queiram imprimir através deste género de restrições. Com o limite assinalado de não ter por consequência uma proibição geral e absoluta de qualquer forma de publicidade utilizada pelos profissionais de saúde.

Num segundo ponto, o Tribunal de Justiça também considerou lícito que os Estados membros proíbam, às farmácias estabelecidas noutro Estado membro, a realização de ofertas promocionais destinadas a conceder um desconto no preço global de uma encomenda de medicamentos quando esse preço exceda um determinado montante, desde que, no entanto, essa proibição seja suficientemente circunscrita e, em particular, dirigida apenas aos medicamentos e não a simples produtos parafarmacêuticos (i.e., outros produtos de saúde, incluindo dispositivos médicos ou cosméticos). É verdade que considerou que tais medidas restringem a liberdade de circulação de serviços, ao limitar a possibilidade de uma farmácia estabelecida noutro Estado membro atrair os interessados residentes naquele primeiro Estado membro. Contudo, considerou que a medida foi justificada pelo objetivo de prevenir o consumo excessivo ou inadequado de medicamentos, objetivo já reconhecido como legítimo pela jurisprudência do Tribunal (v.g., acórdão Apothekerkammer des Saarlandes, procs. C?171/07 e C?172/07).

Finalmente, e na mesma linha permissiva, o Tribunal de Justiça caucionou a possibilidade de um Estado membro impor ao prestador de serviços de venda on line de MNSRM “uma legislação (…) que impõe às farmácias que vendem esses medicamentos a obrigação de incluir um questionário de saúde no processo de encomenda em linha de medicamentos”. O Tribunal considerou que uma tal medida é adequada a assegurar a prestação de aconselhamento personalizado aos pacientes e assim protegê-los de uma utilização inadequada de medicamentos (o questionário permite ao farmacêutico conhecer melhor o paciente em questão e, ao detetar eventuais contradições, assegurar-lhe a distribuição de medicamentos mais adequada; e não identificou formas menos restritivas de atingir o mesmo desiderato). O Tribunal de Justiça, contudo, ignorou inteiramente a implicação de uma tal jurisprudência em sede de proteção de dados pessoais.  Na sua pronúncia, ao invés, considerou que a multiplicação dos elementos interativos, na internet – que devem ser utilizados pelo cliente antes de este poder efetuar uma compra de medicamentos – são aceitáveis, e menos restritivos do que uma alternativa proibição da venda online de medicamentos, aliás em linha com jurisprudência clássica (Cf., neste sentido, acórdão DocMorris – proc. C-322/01, 2003).

Num único ponto a resposta do Tribunal de Justiça foi inteiramente adversa à tradicionalmente restritiva legislação francesa. Com efeito, o Tribunal considerou incompatível com as normas europeias a proibição deas farmácias que vendem esses medicamentos de utilizarem referenciação paga nos motores de busca e nos comparadores de preços,”, salvo se o Estado conseguir demonstrar a adequação e necessidade da restrição à liberdade fundamental para a protecção da saúde pública. O golpe à publicidade pela internet teria sido, de facto, brutal, se tivesse neste ponto sido caucionado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça em causa.

Miguel Gorjão-Henriques | mgh@servulo.com

João Abreu Campos


[i] Acórdão de 1 de outubro de 2020, proc. C-649/18, disponível aqui.

[ii] Diretiva que, na versão atual, pode ler-se aqui.

[iii] Disponível aqui