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A alteração do paradigma do Sistema Elétrico Nacional em Consulta Pública

SÉRVULO PUBLICATIONS 16 Nov 2021

       I.    Enquadramento

No passado dia 10 de novembro foi colocado em consulta pública o anteprojeto do Decreto-Lei que concretizará o novo Regime Jurídico do Sistema Elétrico Nacional (SEN). Os comentários dos interessados em exercer o seu direito de participação devem ser apresentados até dia 24 do mesmo mês, ou seja, dentro de 9 dias.

Prosseguindo os objetivos nacionais e europeus da transição energética e da descarbonização da economia, o diploma pretende dotar o SEN dos instrumentos que permitam assegurar, entre o mais, a sua evolução “para um modelo dinâmico que inclua a produção descentralizada, as soluções de autoconsumo, a gestão dinâmica de redes inteligentes e que assegure a participação ativa dos consumidores nos mercados de eletricidade”. O anteprojeto surge, portanto, no contexto da profunda transformação que é exigida aos modelos e políticas energéticas atuais por forma a fazer face aos objetivos ambiciosos traçados a nível internacional de alcançar a neutralidade carbónica até 2050.

Atendendo a que o cumprimento dos referidos objetivos implica necessariamente uma alteração do paradigma do Sistema Elétrico Nacional, o novo diploma procede a alterações que impactam o regime de todas as atividades do setor elétrico, - agora transversalmente reguladas pelo novo decreto-lei, - revogando, para esse efeito e nos termos do disposto no artigo 306.º, um vasto leque de diplomas legais que estabeleciam autonomamente o regime jurídico dessas mesmas atividades, tais como os bem conhecidos Decretos-Lei n.º 29/2006, 15 de fevereiro e n.º 172/2006, de 23 de agosto. 

     II.    Âmbito de aplicação

Assim, de acordo com a delimitação do âmbito de aplicação material que consta do artigo 1.º do anteprojeto e com as atividades do SEN elencadas no artigo 6.º, o novo decreto-lei regula, de forma agregada:

i) A atividade de produção e armazenamento de energia (Capítulo II);

ii) A atividade de produção para autoconsumo (Secção XIII do Capítulo II);

iii) A atividade de gestão técnica global do SEN e das redes (Capítulo III);

iv) As atividades de exploração das redes de transporte e distribuição de energia (Capítulos IV e V);

v) A atividade de comercialização de eletricidade, incluindo de último recurso (Capítulo VI);

vi) A atividade de agregação de eletricidade, incluindo de último recurso (Capítulo VII);

vii) A operação logística de mudança de comercializador e agregador de eletricidade (Capítulo VIII);

viii) As atividades de operação de mercados organizados de eletricidade (Capítulo IX);

ix) A gestão de riscos e garantias do SEN (Capítulo X); e

x) A atividade de emissão de garantias de origem (Capítulo XI).

Fora do âmbito de aplicação material do novo regime mantêm-se as matérias atinentes à produção de eletricidade em cogeração (que permanece regulada pelo Decreto-Lei n.º 23/2010, de 25 março), à produção de eletricidade a partir das ondas na zona-piloto (regulada pelos Decretos-Leis n.ºs 5/2008, de 8 de janeiro e 238/2008, de 15 de dezembro), à produção de eletricidade a partir de energia nuclear e, por fim, a organização, acesso e exercício das atividades relativas à mobilidade elétrica, que continua a reger-se pelo disposto no Decreto-Lei n.º 39/2010, de 26 de abril.

No que diz respeito ao seu âmbito de aplicação territorial, o artigo 264.º esclarece que, sem prejuízo da aplicação do diploma em todo o território e espaço marítimo nacional, não se aplicam às regiões autónomas (nem à ilha da Berlenga!) as disposições relativas ao mercado organizado, bem como as relativas à separação jurídica das atividades de produção, transporte, distribuição e comercialização de eletricidade, matérias que deverão ser adaptadas ao contexto regional mediante decreto legislativo regional.

Relativamente ao âmbito de aplicação temporal, cabe referir que, nos termos do artigo 276.º, n.º 1, o decreto-lei aplica-se aos processos pendentes na DGEG, sem prejuízo dos atos já praticados, embora sejam estipuladas várias regras transitórias consoante a matérias em causa. A título de exemplo, note-se que os procedimentos referentes à celebração de acordo entre o interessado e o operador da RESP para a construção ou reforço de infraestruturas de rede caducam automaticamente, salvo aqueles que já tenham recebido, aceite e pago o orçamento definido pelo Operador da Rede Elétrica de Serviço Público (‘RESP’) ou que, não tendo recebido esse orçamento, disponham de declaração de impacte ambiental emitida à data de entrada em vigor do decreto-lei.

Apesar do vasto leque de normas de natureza transitória que o diploma prevê, subsistem algumas dúvidas quanto aos termos da sua aplicação a certos títulos previamente atribuídos. Repare-se, por exemplo, que, à semelhança do que já sucedia nos “Procedimentos Concorrenciais para atribuição de reserva de capacidade de injeção na RESP”, comumente designados por “leilões solares”, o novo diploma vem limitar a transmissibilidade dos títulos de capacidade até à emissão da licença de exploração, sendo, para o efeito, vedada qualquer transmissão ou oneração de participações sociais representativas do capital social do titular suscetíveis de conduzir à alteração do domínio direto sobre o mesmo. Questiona-se, por conseguinte, se esta limitação se deve considerar aplicável aos títulos previamente atribuídos, mas cujos detentores ainda não obtiveram licença de exploração ou se, pelo contrário, esta regra somente se deverá aplicar aos títulos que sejam atribuídos após a entrada em vigor do decreto-lei em análise.

   III.    Principais Alterações

As principais alterações introduzidas pelo novo decreto-lei, podem ser estruturadas em cinco eixos principais

i) Um primeiro eixo, no qual se inclui a atividade administrativa de controlo prévio das atividades do SEN, concentra as matérias da sua organização e funcionamento, até agora dispersas por vários diplomas legais, e simplifica o seu funcionamento, assim reduzindo os custos administrativos para os intervenientes. 

Este primeiro eixo reflete-se principalmente nas alterações ao regime da atividade de produção de energia elétrica, e mais concretamente, na eliminação dos dois procedimentos distintos de licenciamento da atividade, um referente à produção em regime ordinário e o outro à produção em regime especial, que passam a ser unificados. Como formas de controlo prévio, são previstas a comunicação prévia, o registo e a licença, que passam a abranger a totalidade das atividades de produção, autoconsumo e armazenamento, devendo os respetivos pedidos ser obrigatoriamente cumulados nos casos em que os centros eletroprodutores ou as instalações de armazenamento distem menos de 2 km face a outro que tenha já obtido o devido registo. Pretende-se, com esta nova regra, evitar o fracionamento artificial dos processos de licenciamento.

Uma outra novidade de grande impacto é a previsão de um regime de “cedências” em que o titular de centro eletroprodutor ou de instalação de armazenamento com potência de ligação superior a 50MVA fica obrigado a atribuir contrapartidas aos municípios em que se localiza o centro eletroprodutor ou a instalação de armazenamento. Estas contrapartidas podem passar pela cedência de UPAC’s aos municípios ou mesmo às populações instaladas na proximidade dos equipamentos, ou, no limite, pela atribuição de uma compensação financeira no valor de € 1500 por MVA de potência de ligação atribuída.  Esta inovação legislativa cumpre um duplo objetivo porque estabelece incentivos para os municípios e suas populações acolherem os parques solares, ao mesmo tempo que protege os promotores da exigência de contrapartidas ou cedências superiores às estabelecidas.  

Por outro lado, o armazenamento autónomo de eletricidade, regulado conjuntamente com a produção, é, pela primeira vez, encarado como uma atividade do SEN exercida em regime de livre acesso, mediante a atribuição de uma licença em moldes em tudo semelhantes à produção.

ii) Um segundo eixo, no qual se inclui o planeamento das redes, centra-se na maximização de todo o potencial de capacidade de receção da RESP, tendo presente o objetivo último de segurança do abastecimento e de qualidade de serviço.

As alterações que se inserem neste segundo eixo afetam principalmente o regime jurídico das atividades de transporte e distribuição, sendo de destacar, antecipando a futura atribuição das concessões municipais de distribuição em Baixa Tensão, a criação de um gestor técnico integrado das redes de distribuição em Alta, Média e Baixa Tensão, que exercerá a sua atividade em regime de concessão atribuída mediante prévio procedimento concorrencial.

Outra das principais novidades no que diz respeito a este segundo eixo consiste na possibilidade de atribuição de títulos de reserva de capacidade (‘TRC’) com restrições, nos termos a regulamentar pela Entidade Reguladora do Setor Elétrico no Regulamento das Redes.  Este novo modo de atribuição do TRC com restrições - as quais serão causticamente identificadas pelo Operador da RESP, passando a integrar o conteúdo mínimo da licença de produção - visa potenciar a evolução para um modelo inovador de gestão flexível das redes que permita maximizar o potencial de receção da rede. Passa a ser possível, por exemplo, atribuir um TRC para um parque solar limitando a capacidade de injeção ao período diurno, ou um TRC a um parque eólico limitado a dias em que o vento atinja uma velocidade mínima previamente definida.

Para além disso, a emissão de TRC na modalidade geral fica dependente do prévio pagamento de uma compensação ao SEN, no valor equivalente de €1.500,00 por MVA, por sua vez posteriormente remetido ao Operador da Rede Nacional de Transporte. Note-se, porém, que, como é natural, este valor não será devido nos casos em que os pedidos ainda não diferidos caduquem por decisão de atribuição dos títulos mediante prévio procedimento concorrencial.

iii) Um terceiro eixo, por via do qual se introduzem mecanismos concorrenciais para o exercício das atividades do SEN, traduz uma opção clara de fazer depender a atribuição de licenças e concessões no âmbito de várias atividades do SEN exercidas em regime de exclusividade, de prévios procedimentos concorrenciais.

O terceiro eixo tem um impacto transversal nas várias atividades do SEN, mas principalmente nas atividades de comercializador de último recurso e de agregador e operador logístico de mudança de comercializador e de agregador, bem como na atividade de emissão de garantias de origem. Por conseguinte, estas atividades passam a ser exercidas mediante licença a atribuir de modo concorrencial e transparente, à semelhança do que já sucedia com os procedimentos concorrenciais para atribuição dos títulos de reserva de capacidade de injeção na rede.

No que diz respeito às atividades de comercialização e agregação, importa salientar que esta última fica sujeita a mera separação contabilística das demais atividades, contrariamente à separação jurídica que é exigida no que diz respeito à comercialização.

São ainda reforçados os deveres de prestação de informação pelos comercializadores aos clientes, prevendo-se, em certos casos, a obrigatoriedade de disponibilização de contratos de fornecimento a preços dinâmicos.

iv) Um quarto eixo, que se centra nos consumidores e no papel que podem passar a desempenhar no âmbito do SEN, permitindo-se-lhes que passem de meros consumidores passivos para agentes ativos que produzem eletricidade para autoconsumo ou para venda de excedentes, armazenam e oferecem serviços de flexibilidade e agregam produção.

Estas alterações têm, portanto, impacto profundo no regime jurídico do autoconsumo, no âmbito do qual é finalmente consagrado o conceito de “proximidade elétrica”, bem como a partilha dinâmica de energia de modo a otimizar os fluxos de eletricidade. 

v) Por fim, um quinto eixo, que assenta na criação ou densificação do enquadramento jurídico de realidades inovadoras, como o sobreequipamento, o reequipamento, os híbridos e a hibridização, atualmente desprovidas de regulamentação.

O sobreequipamento e o reequipamento passam a ser considerados como alterações não substanciais do título de controlo prévio preexistente, podendo ser inclusivamente requeridos após a emissão da licença de produção.

O sobreequipamento e o reequipamento são permitidos em todos os centros electroprodutores de energia renovável independentemente da fonte utilizada. No caso do sobreequipamento, prevê-se um aumento da potência instalada até 20% sem alteração da potência de injeção. Quanto ao reequipamento, permite-se um aumento da potência de ligação até 20% da potencia inicialmente atribuída, em determinadas condições.

Já no que concerne à hibridização, esta passa a estar sujeita aos procedimentos de controlo prévio previstos para as restantes atividades, sendo expressamente consagrada a “separação na hibridização”, isto é, a possibilidade de esta ser concedida a um requerente distinto do titular do centro eletroprodutor ou da UPAC a hibridizar, mesmo que este não se encontre em relação de domínio com o requerente.

Neste contexto, é igualmente estabelecido um quadro jurídico adequado aos projetos-piloto de inovação e desenvolvimento através da criação de três Zonas Livres Tecnológicas (ZLT), em Viana do Castelo, na área da central termoelétrica do Pego e no Perímetro de Rega do Mira.

Note-se, por fim, que, para além dos diplomas legais e regulamentares a aprovar na sequência da entrada em vigor do decreto-lei em análise, todos os regulamentos do setor elétrico atualmente em vigor deverão ser objeto de atualização no prazo máximo de 18 meses. 

Mark Bobela-Mota Kirkby | mak@servulo.com

Francisca Mendes da Costa | fmc@servulo.com

Catarina Pita Soares | csg@servulo.com

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